Amanhã,
de Lúcia Hiratsuka
Leitura de Dani Gutfreund
Descrever a delicadeza de Amanhã, de Lúcia Hiratsuka, publicado pela Pequena Zahar, é uma tarefa quase impossível. Logo na capa do livro, vemos três meninas quase iguais não fossem os adornos e penteados. Suas expressões são ligeiramente diferentes também. Elas estão em janelas: nossa narradora, que o leitor em breve conhecerá, está na de cima, isolada pelo título e nome da autora. Já as outras duas estão quase alinhadas, marcadas por um pequeno desvio que pode indicar a linha de ascendência. Não sabemos quem são, mas são personagens de um livro da Lúcia e, assim, intuímos que sejam parte de sua própria história.
Sua obra traz a experiência da infância, as memórias que a sustentam, as lendas, contos e cantigas que ouvia: ela fala de si e das vozes que a compõem. Fala também do tempo, de como se tecem os instantes em horas e dias no caminho do amadurecimento. Da pressa que habita a criança e a paciência que cresce com ela, na experiência da espera que dá ao tempo o tempo que ele pede.
Esse tempo vai e vem, mas é de mansinho que chega sempre, para espiar o que está acontecendo. Amanhã conta uma parte da infância de três meninas, de épocas diferentes. Um amanhã que promete ser cheio das novidades que acompanham o caminho da escola. A escola está “dentro do amanhã” e “amanhã [em japonês] se escreve dia alegre”.
É bonito ver como a relação – sempre forte – dessas meninas com suas mães se estabelece em suas diferenças e no tanto que são iguais. As ilustrações reiteram isso: uma técnica (lápis de cor) para os três tempos, cada um com sua cor – laranja, azul ou amarela - que compõe com a base: verde, preto e branco.
As histórias da menina, nossa narradora em primeira pessoa; sua mãe Sayuri e sua avó Orie guardam as peculiaridades de cada período e lugar, e se fundem nas palavras e imagens que creio serem as de Lúcia – chuva, terra, tarde, máquina de costura, casa, estrada, trem, capim, manhã, entardecer, para citar algumas que aparecem e reaparecem, em diferentes costuras, transitam entre seus livros e provocam encontros e sensações distintas. Sensações sempre doces e suaves, como o toque da mão da menina sobre o papel em que aprende a escrever ou o movimento dos corpos, os caminhos que se mostram numa paisagem mínima, em que as coisas se transformam frente ao olhar.
Para este livro, usou elementos da linguagem dos quadrinhos, esmaecendo as fronteiras entre o livro-álbum e a novela gráfica: imagens sequenciais e molduras que variam em tamanho e até abrem novas janelas – como quando ouvimos sobre o pai de Sayuri –, como pausa ou adendo à narrativa principal.
Entre capítulos, a personagem-narradora anuncia a próxima história perguntando primeiro à mãe, depois à avó, se elas iam à escola. Quando fala com a mãe, mostra a ela um caderno com as folhas preenchidas, talvez mostrando que cumpriu a tarefa. Com a avó, vemos as duas com um tsuru nas mãos – um pássaro feito de origami carregado de significado e bons presságios. Orie transborda em Lúcia, seja na memória do peixe desenhado no chão que a fez descobrir seus próprios traçados ou na convicção de que suas raízes a sustentam. O livro que leva seu nome foi publicado pela mesma editora em 2014.
Lúcia fala calma e pausadamente, e nessas pausas, no interstício entre as palavras, tantas vezes suspensas, ouvimos o que ela realmente diz. Seus livros são cheios de ritmo, e este não é diferente. Assim, ela pede licença para entrar e se instala devagar dentro da gente. Uma vez me disse que pode pensar o silêncio como um respiro, “uma pausa que precisamos para fluir, seja na vida, na leitura, na narrativa”. E me fez pensar em Ma, um conceito muito arraigado na cultura japonesa, um entre onde e quando tudo pode acontecer. Intervalo ou suspensão no tempo em que o que está no mundo é percebido não como coisa, mas como ação. Uma ação do tempo e do espaço que provoca novos significados. Ler Lúcia para mim é isso: me deixar levar por esse entre e conhecer ou reconhecer sensações costuradas por imagens e palavras dispostas entre tantos silêncios ao longo das páginas.
“O ideograma é interessante, pois aparecem dois portões e um ideograma sol/dia”, definição e ilustração da autora.
Amanhã
Texto e ilustrações: Lúcia Hiratsuka
Páginas: 64
Formato: 21.00 X 25.00 cm
ISBN: 9786588899403
Selo: Pequena Zahar