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Uma caixa de surpresas

Isabel Malzoni, Odilon Moraes e Alexandre Rampazo contam os bastidores da nova coleção de livros ilustrados (1) da editora Caixote.

 

por Janette Tavano

 

Odilon Moraes costuma dizer que sua estreia no mundo dos livros ilustrados aconteceu no susto. Na época em que Augusto Massi era editor da Cosac Naify, o ilustrador levou o boneco de um livro para a sua avaliação. Era um rascunho, com o desenho corrido feito a lápis, apenas para mostrar a ideia do projeto. Massi concordou em publicar, mas no momento em que Odilon se preparava para fazer a arte final, veio a surpresa: o editor queria o livro justamente do jeito como estava. 

Hoje, Odilon considera que esse “acidente de percurso” não tenha sido tão acidental assim: “As imagens em preto e branco já me seduziam, antes mesmo da conversa com o Massi. Eu gostava de muitos autores que desenhavam sem usar tantas cores, como Shel Silverstein e Gabrielle Vincent, mas nunca tinha tido coragem de mostrar algo meu nessa linha para um editor porque me parecia um desenho muito cru. Massi foi quem me fez perceber que, na verdade, a força da narrativa estava justamente nessa crueza, quando um autor se abstém de qualquer outro recurso que não o da narrativa. Quando se usa mais cores, acaba se acrescentando outras camadas à história”, diz. 

Desse episódio surgiu um livro de muito sucesso na carreira de Odilon -- Pedro e Lua, que recebeu o prêmio de Melhor Livro do Ano para Crianças, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – e ainda uma metáfora que Odilon repete até hoje em suas entrevistas e aulas: às vezes, o ilustrador só precisa de um banquinho e um violão. “É como Massi me disse na época, a ideia de fazer mais com menos. Pedro e Lua não precisava de mais nada, era como um banquinho e um violão”.

Mas ele concorda que mesmo um banquinho e um violão precisam de captadores de som muito bons para dar certo: é a combinação de se fazer o simples com o máximo de apuro. E aí entra o Odilon editor, um novo papel que assumiu em 2021 a convite de Isabel Malzoni, da Caixote, uma editora que vem publicando nos últimos dois anos livros que se destacam por seus projetos muito bem cuidados. 

A ideia dessa parceria surgiu naturalmente para Isabel, que é fã do ilustrador há muito tempo: ela já foi aluna do Odilon e publicou um livro ilustrado por ele, O pai da mamãe, um dos sucessos de venda da editora. “Durante uma das aulas, pensei admirada o quanto Odilon entende desse assunto. Lembro de ter o desejo de grudar nele para absorver esse conhecimento todo. Só que como não dava para grudar, tive a ideia de trazê-lo para trabalhar comigo. Foi o que fiz!”, conta.

Na época, Odilon falou que não saberia fazer a parte prática do trabalho, que não tinha jeito para cuidar de contratos, negociações, cronogramas. Sua fama de não saber mexer em computador é bastante conhecida e verdadeira! Mas isso não foi problema para Isabel: “Como eu adoro fazer essa parte, sugeri uma parceria em que ele só cuidasse da escolha dos títulos e eu ficaria com o trabalho executivo”. 

Feliz com o convite para ser “o editor dos sonhos”, Odilon não teve dúvida por onde deveria começar: sua estante. “Peguei vários livros editados fora do Brasil que têm a minha cara e que, acredito, deveriam ser publicados aqui. Esses títulos serviriam não só de sugestões para a Isabel negociar direitos autorais, mas também de referências para os livros que seriam produzidos aqui. Fiz uma pilha, tentando encontrar uma coerência na seleção, o porquê de eu estar escolhendo tais obras. Aí me dei conta de que dos dez livros ilustrados que havia separado, nove eram em preto e branco”, conta. 

Quando Odilon mostrou sua pilha para Isabel, não foi difícil convencê-la de qual seria a linha da nova coleção. “Odilon já estava envolvido com a questão do preto e branco no trabalho dele, basta ver o livro Os invisíveis, que ele ilustrou para a Companhia das Letras, e o Vida animal, produzido em comemoração aos seus 30 anos de carreira junto com o Coletivo Baba Yaga”, diz Isabel.

Nasceu assim a Coleção PB: Coleção Preto e Branco, que também vale para Coleção Picture Book. Nos bastidores, também é apelidada de unplugged, clara referência à ideia do banquinho e violão. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Além de livros ilustrados em preto e branco, os editores concordaram em mais um critério ousado: os títulos seriam voltados para um público sem faixa etária definida. 

“Acredito no livro ilustrado como uma linguagem, algo que sai da dimensão da escrita só com palavras. Tenho vários amigos que não costumam ler muito, e a coisa mais legal é dar um livro ilustrado para eles, porque, às vezes, lêem na mesma hora e daí vejo os olhos deles cheios de lágrimas. Pronto, ali aconteceu o milagre da literatura”, diz Odilon, que compara a linguagem do livro ilustrado à da poesia: “É algo que toma a gente, não importa se você é um adulto ou uma criança. Toma a gente praticamente num instante, você abre, lê e pronto, aquilo acontece! Tem autores que falam exatamente isso, que o livro ilustrado tem o tempo da poesia”, continua.

A partir dessas escolhas, a coleção passou a fazer parte do selo O.tal. Isabel explica: “Os livros que saem pela Caixote são de literatura infantil, para as crianças preferencialmente. Já o selo O.tal é voltado para livros ilustrados como forma de expressão artística, que podem ser vistos e lidos por todas as faixas etárias. O primeiro que publiquei nessa linha foi o Milágrimas, da Alice Ruiz S com ilustrações da Luli Penna. No caso da PB, fez todo o sentido”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 






 

A estreia

A escolha do primeiro livro da coleção foi mais fácil do que eles imaginavam. E aí Alexandre Rampazo entra na história: “Eu tinha prometido um livro para Isabel há algum tempo e mostrei o boneco de Coisas para deslembrar no início de 2021, que ela amou e quis publicar. Inicialmente, o livro era muito próximo do que conhecemos hoje, mas tinha mais cores. Então houve um hiato entre nossas conversas e quando voltamos a nos falar, Bel contou sobre essa nova coleção de livros ilustrados para além da infância com a curadoria e edição do Odilon”, diz Alexandre.

Foi quando os três juntaram todos os pontos e perceberam que para o livro se encaixar perfeitamente na PB precisava apenas abandonar os tons coloridos. “Tenho que dizer que para fazer parte de uma coleção tão ousada com a edição do Odilon, não foi difícil dizer: sim, claro que eu topo”, conta Alexandre.

Da parte do Odilon, o casamento foi perfeito. “Quando vi o livro do Alexandre pela primeira vez, não tive dúvida. Havia nele uma força narrativa muito grande, capaz de provocar o leitor a pensar sobre a vida, seja ele um jovem ou um pai que está lendo junto com o filho”, diz Odilon.

Não foi o primeiro encontro entre os dois artistas: eles se conhecem desde 2010, quando Alexandre foi aluno de Odilon em um curso no Instituto Tomie Ohtake, ministrado também pelo ilustrador Fernando Vilela.

“Odilon talvez seja o maior estudioso do livro ilustrado do Brasil. E um dos mais generosos. Ouvi-lo é sempre uma aula”, diz Alexandre que, na época, buscava entender o seu lugar na produção de uma literatura criada para a infância. “Tinha necessidade de descobrir a minha linguagem, o lugar onde habitava a forma de pensar a minha literatura, que é onde imagem e palavra fazem parte de um todo narrativo. Então passei por um período de experimentações. Trabalhei até com roteiro de cinema. Então cheguei no Odilon e no Fernando, que me disseram que aquilo que eu fazia era livro ilustrado. Entendi que minhas narrativas funcionavam a partir dessa lógica”, conta. 

Nesse reencontro em 2021, ambos assumiram desafios: enquanto um estreou como editor, o outro surpreendeu seus leitores com um livro diferente dos anteriores, feito para um público mais velho: “Depois do lançamento, algumas pessoas comentaram que Coisas para deslembrar tinha um estilo diferente dos outros livros que publiquei. Não tenho tanta certeza disso. Acho que toda a construção da minha obra está ali, mais ou menos evidente. A questão gráfica, o conceito narrativo, o ritmo. Talvez a diferença seja que claramente este título não seja para o mesmo público de grande parte da minha obra, que são as crianças. O livro é para os seus pais, os seus irmãos mais velhos. Nele, aparece essa minha liberdade em poder ousar neste momento, em poder oferecer um projeto para uma editora que aceite fazer algo mais ousado. Tem também uma construção como autor. Estou na LIJ desde 2008 com obras autorais. Nesse percurso, entre acertos e equívocos, fui construindo meus processos, meu modo de operar, encontrei meu tom... Então acho que é mais uma maturidade e uma autonomia artística do que um “outro Alexandre”. Continuo neste trilhar, e meu desejo é cada vez mais o de criar narrativas de maneiras diferentes, fora do lugar comum”, diz.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A edição

Além de eliminar as cores, o trio afinou ainda mais o projeto na hora da edição. 

Segundo Odilon, como Coisas para deslembrar estava com a Isabel desde o início do ano, ela e Alexandre já haviam conversado sobre questões que diziam respeito ao texto, pois havia o interesse dela de publicar a obra antes de a coleção PB existir.

Quando Odilon entrou no projeto, sua sugestão foi a de eliminar o uso do papel vegetal na última página: “Esse recurso era usado para que a palavra “reviver” pudesse ser lida ao contrário. Mas achei que essa transparência tinha um peso tão intenso ali, que acabava tirando a força do próprio “reviver”, além de causar um tropeço na linearidade que acompanhávamos a cada página. Era um elemento gráfico e narrativo muito forte que atrapalhava a própria narrativa. Pensamos então em uma solução usando as tarjas pretas que já vinham se repetindo ao longo de todas as páginas. Isso deixou o projeto mais enxuto e, ao mesmo tempo, criou o efeito que Alexandre desejava”, conta. 

Em relação à capa, inicialmente seria igual à folha de rosto. Isabel foi quem sugeriu deixar a capa apenas com as tarjas, criando essa ideia de um título escondido: “Na verdade, há um título na capa. Você só não pode enxergá-lo. Isso por conta das peças que a memória prega em você, sobre o que você lembra e o que você deslembra. Estabelece-se assim, desde o princípio, o jogo imagético ao qual o livro se propõe. Não ter um lettering, o título na capa, conversa com o conceito do livro e se o objetivo de uma capa é sintetizar o conteúdo, neste projeto a gente não poderia pensar de outra forma”, diz Alexandre. 

 

Os próximos

Isabel e Odilon não têm ainda uma programação definida de quais serão os próximos títulos da coleção nem de quantos serão no total. Na lista de sugestões estrangeiras do editor, há alguns livros recentes e outros históricos, como o “BAAA”, de David Macaulay, de 1985, uma espécie de ensaio sobre a cegueira, segundo Odilon. Mas eles também querem provocar autores brasileiros a apresentarem originais. “Quero muito que ilustradores nos procurem. Sabe aquele livro que está no fundo da gaveta porque existe uma dúvida se é ou não um projeto para criança? Queremos ver!”, diz Odilon. Ele imagina vários nomes que se encaixariam nessa coleção, como Renato Moriconi e Andrés Sandoval.

Quanto a ter livros do próprio Odilon na PB, ele diz que não é o caso: “Há o meu lado autor de livro ilustrado e o meu lado apaixonado por livro ilustrado. Na PB, me dedico a esse segundo interesse, que vem da minha paixão”, diz Odilon, sentado no meio de suas estantes lotadas de livros, com os olhos brilhando.

Como disse Rampazo: “Ter o Odilon como editor não é uma sorte só minha. É uma sorte para o mercado editorial no Brasil”.

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Imagens cedidas pela editora Caixote

A história da Caixote

 

A Caixote de Isabel Malzoni existe desde 2015, quando publicava apenas livros em formato de aplicativo. Já com o primeiro título, Pequenos grandes contos de verdade, a editora ganhou o Jabuti de livro digital, categoria extinta atualmente. Em 2019, ela lançou o livro digital Amal e a viagem mais importante da sua vida e ganhou um edital do Proac para fazer esse título impresso: “Aí aconteceu o impresso na minha vida”, diz Isabel. Ela acabou então fazendo o caminho inverso do que normalmente tem-se visto no mercado editorial. “Atualmente estou numa fase de conflito com o digital. Já o impresso é algo que me dá muito prazer, porque me dá a oportunidade de ter um contato muito mais direto com as pessoas. O digital pressupõe uma super equipe da qual você depende - animador, programadores, vários profissionais de trilha sonora. No impresso é tudo mais próximo e direto: chego para o autor, faço a proposta e pronto, o livro rola. Depois, ligo para as livrarias para falar de um lançamento. É um mundo tão gostoso, de pessoas tão gostosas! De conversar, de trocar... me sinto muito acompanhada e ao mesmo tempo cheia de ferramentas para fazer um livro”, diz. 

Amal, escrito pela jornalista Carolina Montenegro e ilustrado por Renato Moriconi, é um grande sucesso, tanto no digital como no impresso. Já está indo para a 3ª impressão, mesmo sendo um livro que trata de um assunto delicado como a questão do refúgio. Mas Isabel conseguiu o apoio da ONU e o título começou a ser adotado em escolas. “Fui vendo a coisa fluir com o livro impresso de um jeito que era muito difícil de acontecer no digital”.

A história não foi muito diferente com o segundo livro, O pai da mamãe, de Cristiana Gomes e ilustrações do Odilon. Isabel lembra que o livro ficou pronto uma semana antes do início do isolamento social por causa da epidemia de Covid. “Fechei um orçamento com a gráfica e tinha já vendido o livro para um clube de leitura, não podia cancelar, então imprimi mesmo com esse cenário inseguro. Tive a ideia de fazer uma campanha com cartas para promover o livro. Criamos um papel de carta com ilustração do Odilon e quem comprasse o livro ganharia uma carta impressa com o seu texto ou um desenho para enviar para quem quisesse. Então, no auge do isolamento, quando estávamos com saudade das pessoas, preocupação com os mais velhos, essa brincadeira das cartas deu muito certo. Aí, esgotou a primeira edição!”, conta.

Em seguida, veio O menino que virou chuva, de Yuri De Francco, um autor estreante, com ilustrações de Renato Moriconi, e mais um sucesso: o livro foi finalista do Prêmio Jabuti em 2021, na categoria Infantil, ganhou o selo Altamente Recomendável da FNLIJ e entrou na seleção dos "30 Melhores Livros de 2020" da Revista Crescer.

“Senti que o mundo me levou para esse caminho. Tudo era tão sofrido no digital e, de repente, portas e janelas foram se abrindo no impresso, o que é muito engraçado, porque as pessoas me diziam justamente o contrário, que era difícil lidar com livrarias, gráficas etc.”, diz.

A verdade é que quando a gente escuta Isabel contando sua história, é fácil entender por que portas e janelas se abrem para ela: a editora tem paixão pelo que faz. “O gostoso de fazer um livro, para mim, é poder reunir e curtir os talentos de tantas outras pessoas, estar próxima de todo mundo e ver o livro nascendo”. Ela conta que na impressão de Coisas para deslembrar, por exemplo, a gráfica provavelmente atrasaria a entrega, o que seria um problema enorme para ela, que já tinha marcado e divulgado uma Live de lançamento, e vendido o livro para um clube de leitura. “A produtora gráfica deu então um jeito, levou a capa do livro para outro fornecedor, que fez o silk à mão, com tinta UV para secar mais rápido, e depois devolveu para a gráfica inicial, onde a equipe trabalhou até tarde para entregar os exemplares. O livro chegou a tempo e veio com a energia de toda essa galera! Para mim é muito importante que as pessoas percebam isso!”.

Atualmente com nove títulos no catálogo, Isabel já tem vários projetos para 2022, entre eles um livro sobre a violência policial nas comunidades e as infâncias privadas dos direitos. “Não quero lançar um livro que, depois de um ano, ninguém mais se lembre. Busco projetos que tenham relevância. Penso sempre se aquilo vai ser pertinente para o universo da criança ou se é relevante para a sociedade onde essa criança está inserida, como é o caso de Amal ou de O tio + oito, que trata de diversidade. Acredito que se pode falar sobre qualquer tema com a criança, mas vejo que alguns livros são feitos porque o adulto está querendo falar sobre tal tema, sem ter na verdade um olhar de aproximação com a criança”, diz Isabel. 

Ela sabe que contou com muita sorte em vários momentos – como quando Anelis Assumpção lhe contou que seu pai, o compositor Itamar, tinha deixado vários textos para crianças inéditos: “Eu nem acreditei quando ela me disse isso, justo pra mim que sou louca pelo Itamar! Óbvio que na hora quis ler os textos e publicar os livros”, conta. Hoje a coleção “Itamar para crianças” é mais um projeto superespecial da editora.

Coisas para deslembrar, por Alexandre Rampazo

“Existem assuntos que me encantam, mas que mantenho adormecidos até que os caminhos para desenvolver uma história tomem um corpo. O tema da memória, e como ela nos constrói como indivíduos, sempre me atraiu. Principalmente pela questão de a memória, muitas vezes, fazer com que a gente estabeleça novas conexões, a partir de pequenos detalhes, sem que a gente se dê conta de que, às vezes, estamos percorrendo um lugar novo, diferente. Há estudos que dizem que as recordações humanas são algo vivo e que, quando acessamos essas recordações, elas são forjadas no presente, e não no passado como um arquivo fixo. 

No segundo semestre de 2019, estava envolvido com essa ideia sobre fragmentos da lembrança, sobre como narramos um evento, um episódio de algo que vimos ou que tenha acontecido, e como essa mesma história se torna mais ou menos rica em detalhes com o passar do tempo. Então pensei nessa mulher que revisitaria sua história pelas fotografias, mas que recordasse sua história de forma fragmentada, dando novos sentidos para essas lembranças, para seus sentimentos, que poderia ser algo muito concreto num instante e se transformar numa coisa diferente no momento seguinte. No caso deste livro, haveria um outro sentido para a mesma frase lida na página anterior. Então, Coisas para deslembrar é uma história monocular que navega na construção da memória da personagem de forma imagética, porque as tarjas pretas sobre o texto, que acabam se assumindo como elementos gráficos, ajudam a construir a história e conduzem o leitor a um entendimento múltiplo a partir de uma única narrativa. O leitor acaba tendo histórias diferentes dentro de um mesmo livro.

Também vale dizer, para que não se pense que é uma história aleatória, que ela carrega uma espinha dorsal narrativa, com começo, meio e fim, que a gente pode entender como um ciclo de vida da personagem. E a narrativa visual caminha paralelamente ao texto, mas assumindo uma autonomia que, ao mesmo tempo, é complementar à palavra, porque o leitor observa a personagem, que observa as fotos na parede, e cada uma dessas imagens sugere uma nova história que não está sendo contada no texto.

E o curioso é que a fotografia não é nada mais do que uma forma de registro de memória. A construção desse livro passa por vários caminhos. O cineasta Chris Marker escreveu: “Eu passaria a vida a indagar sobre a função da lembrança, que não é o oposto do esquecimento, mas seu avesso. Nós não nos lembramos, recriamos a memória, como recriamos a história. Como se lembrar da sede?”. 

No meu caso, tenho uma preocupação literária, mas também estética com esse livro. E a questão imagética da narrativa é extremamente relevante para mim. Então acho que o livro completa aquele famoso tripé do livro ilustrado em que palavra, imagem e objeto convergem para poder contar uma história. Talvez o maior desafio fosse não permitir que o leitor se cansasse da história por (aparentemente) ela se repetir a cada página (o que não acontece). Era importante encontrar o tom certo, o ritmo de apresentar mais ou menos para o leitor. Nesse processo, de forma muito natural, coisas foram descartadas no meio do caminho, como por exemplo, minha ideia original de que as tarjas pretas fossem impressas em papel vegetal em todas as páginas, o que cobriria o texto, para haver uma correspondência gráfica com o desvelar de memórias da personagem. A ideia foi deixada de lado para que fosse usada somente no instante onde o palíndromo “reviver” surge no final do livro. Essa ideia, por fim, também foi deixada de lado na versão final. A escolha gráfica das tarjas, que escondem e revelam o texto, conversa com o conceito do livro. Uma representação dos caminhos que a memória percorre. Aqui a imagem trabalha a favor da narrativa e não é pura e simplesmente uma apropriação da estética ou do recurso da escrita de poesia de blecaute. Porque não é um texto aleatório. Há uma construção narrativa. A história da personagem é desconstruída, mas ao mesmo tempo se importa em dar um sentido à narrativa que é contada. Em Coisas para deslembrar me preocupei em criar uma coerência, uma linha narrativa. Para mim, o ponto de partida sempre foi imaginar o poder da memória e como os registros nos moldam como seres, e não uma simples apropriação estético/estilística.

Outra questão é que ainda no boneco do livro, usei uma fonte Times em caixa alta e baixa. Posteriormente percebi que teria que usar uma fonte toda em caixa alta, para que nas frases fragmentadas houvesse uma unidade visual. 

Há uma infinidade de processos quando fazemos um livro. Um projeto que surge no segundo semestre de 2019 e é concluído no final do primeiro semestre de 2021, é algo que exigiu um esforço para se tornar o que é hoje, mas que, tenho certeza, se tornará muitas outras coisas nas mãos dos leitores. É um livro que exige um leitor atento, que saiba ler a entrelinha, o invisível do texto e da imagem, então as escolhas dos elementos narrativos tiveram que ser cuidadosas. Não é um livro para se ler uma única vez. A cada leitura é provável que algo novo irá surgir: por qual razão a protagonista exibe um colar no pescoço, por exemplo? Qual o sentido que a palavra “como” pode ganhar na mesma frase e em momentos diferentes? Os intervalos das tarjas quando exibem ou escondem um ponto final, podem mudar completamente o sentido de uma frase? Enfim, como gosto de dizer, o livro ilustrado não é um livro, é uma experiência literária expandida”.

(1)  No Lugar de Ler costumamos usar o termo livro-álbum, mas nesta matéria optamos por usar livro ilustrado por ser a forma como Odilon Moraes, Isabel Malzoni e Alexandre Rampazo se referem a esse tipo de livro.

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Alexandre Rampazo é autor e ilustrador de livros. Ganhou três prêmios Jabuti, o selo altamente recomendável da FNLIJ, o Troféu Monteiro Lobato, entre outros.

(foto: arquivo pessoal)

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Isabel Malzoni é editora e diretora da Editora Caixote.

(foto: arquivo pessoal)

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Odilon Moraes é autor e ilustrador de livros. Foi vencedor três vezes do Prêmio Jabuti na categoria Ilustração e três vezes do Prêmio FNLIJ de melhor livro do ano, entre outros.

(foto: arquivo pessoal)

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