Diário das coisas impossíveis, de Paula Schiavon – uma leitura possível
Leitura de Dani Gutfreund
imagem de processo, cedida pela autora
Na capa, casas – talvez um pouco estranhas ou, pelo menos, fora do comum. Estão alinhadas, ocupando a parte mais baixa da metade inferior do livro. Todo o resto é branco, e esse branco é cortado pelo título e pelo nome da autora. O im do impossível se destaca, em azul. Azul que combina com a cor de um único pássaro diferente entre outros tantos que, como as roupas, se seguram por um fio. Esse im destacado me lembra que o possível habita o impossível. Faz com que me demore na palavra, me embrenhando numa discussão interna do que seria impossível, impossível para quem ou por quê. O Diário das coisas impossíveis, de Paula Schiavon, também fala de possibilidade, ainda que pendurada por um fio, como veremos a seguir.
O branco na capa acolhe esse pensamento: ele é prenhe de possibilidade, nele tudo pode acontecer. Um branco que é não preenchimento, e que, ao mesmo tempo, se dá à criação, instaura o vazio, que também vamos experimentar, em toda sua potência, no que falta e no que pode ser. A capa no livro-álbum, mais do que um convite à leitura, introduz ou prefacia o que vamos enfrentar. Às vezes, algo suave; outras, nem tanto. O Diário, embora suave, é denso e está bem longe de ser fácil. Uma amiga, grande editora, após sua leitura sempre atenta, fechando o livro como se aquele cartão de gramatura 250 pesasse quilos, me disse “este é nível avançado”. É duro mesmo fechar o livro, mesmo que a gente o faça e reabra, mais de uma vez, porque a primeira leitura pede uma segunda, depois outra, e possivelmente uma mais. Não contente, o leitor voltará inúmeras vezes a ele também depois, em outras ocasiões.
Já na capa ficam estabelecidos os pilares do livro-álbum, essa linguagem que se estabelece na relação entre palavra, imagem e design e que conta com um leitor disponível e ávido para juntar as peças que o livro apresenta de modo fragmentário para, ao final da leitura, se compor o todo. Devemos aqui estabelecer que essa é uma relação de interdependência: os elementos do livro-álbum estão sempre em relação para gerar sentidos, não funcionam autonomamente, ou seja, não são dissociáveis. Como coloca Díaz, “nos livros-álbuns não basta que exista uma interconexão de códigos. Deve prevalecer uma dependência tal de modo que os textos [verbais] não possam ser entendidos sem as imagens e vice-versa. Ou seja, devem submeter-se a uma interdependência de códigos” (2007, p.93)
E, talvez, meu leitor se pergunte que livro é esse e por que linguagem, ao que respondo, ainda que timidamente, que esse é um livro que extravasa as fronteiras da literatura e se estabelece na intersecção dessas linguagens – texto verbal, visual e gráfico – inaugurando, tal qual fez o cinema, um novo campo, uma nova linguagem. E, pode ser que agora, meu leitor me esprema um pouco mais e me pergunte por que o Diário, ao que lhe respondo, ainda tímida, porém com uma ponta de orgulho que não posso esconder por ter acompanhado de perto sua concepção e por tê-lo visto nascer – e até ajudado no seu parto –, que é porque o Diário se fez um exemplo como poucos para o percurso do leitor no livro-álbum, é excelente metáfora da ação do leitor, e um exercício perfeito de leitura dessa linguagem.
Para que receba a obra, se permita auscultá-la – que imagem bonita essa de auscultar a obra–, deixar que se manifeste, que se mostre a ele, para que depois reflita sobre ela, o leitor deve habitar o mundo proposto pelo livro, ou seja, “[...] deixar que se revele em toda sua arquitetura: da observação da capa ao ato de fechar o livro, relacionando-se com cada um dos elementos que compõem este livro, em que até os paratextos podem ser elementos narrativos.” (GUTFREUND, 2022, p.29). Entre as ações que envolve a leitura, precisamos incluir o retirar-se ou silenciar-se para ouvir melhor o que ali está dito, neste caso, entre palavras e imagens que se envolvem e desenvolvem ao longo da sequência de páginas duplas. Para fazer isso, vamos abrir o Diário.
A segunda capa e o falso rosto fazem as vezes de guardas – são falsas guardas – e lá vemos outras casas, ainda alinhadas na parte inferior da abertura (a dupla formada pelas páginas esquerda e direita), como se andássemos por essa rua da cidade. As roupas no varal e as plantas revelam que o lugar é habitado. O desenho, aqui, é quase todo linha. Com alguma sombra e pouquíssimo preenchimento, grafite e carvão marcam o preto sobre o branco do papel, só há um pássaro azul que, virador de página, nos convida para acompanhá-lo para dentro do livro; e, assim fazemos, seguindo com os olhos seu quase pouso na próxima dupla, que inclui a folha de rosto. Ainda em aterrissagem o encontramos na dupla seguinte, junto a uma data e as primeiras palavras, que não apenas seguem o título, mas reiteram que é um diário e, quando em relação à imagem, cuja moldura só permanece à esquerda para acomodar as palavras e o pouso do pássaro, fortalecem o sentido de esperança que nos acompanhará a cada virada de página em maior ou menor medida. Vale se demorar nessa imagem: um menino em close olha para o passado do livro, cheio de esperança, emoldurado pelo que saberemos a seguir ser uma janela e pelo forte desejo que o aprisiona. De onde eu, leitora, olho se atrás do menino, também encerrado nos limites da janela, está o céu? É o mundo contido naquele desejo esperançoso? É só reflexo? Na nuvem, alinhada com a cabeça do menino vejo um rosto, ou uma máscara talvez, indiciando certo medo ou dúvida. Será somente minha imaginação?
Contemplar significa tornar-se disponível para o que está diante de nossos sentidos. Desautomatizar tanto quanto possível nossa percepção. Auscultar os fenômenos. Dar-lhes a chance de se mostrarem. Deixá-los falar. Para Peirce, essa capacidade contemplativa corresponde à rara capacidade que tem o artista de ver as cores aparentemente da natureza como elas realmente são, sem substituí-las por nenhuma interpretação. Nossas interpretações vêm sempre muito depressa, sem nos dar tempo para simplesmente nos abrirmos com certa singeleza para o que se apresenta. Essa candidez intelectiva nos disponibiliza para as primeiras impressões tanto sensórias quanto abstratas que os fenômenos despertam em nós. (SANTAELLA, 2019, p.29)
falsa guarda
verso da guarda e folha de rosto
Viro a página para encontrar o pássaro azul agora pousado no beiral da janela, como se conversasse com o menino. Na infância, talvez os pássaros azuis dialoguem com seus donos, encontrem caminhos possíveis para se soltar. Talvez o que mais tarde, com esforço, se torna brecha, seja no começo da vida um vasto campo de possibilidade. Essa dupla de páginas sem texto seria, para Ana G. Lartitegui (2023), um bom exemplo de eloquência. Entre a esperança e o desejo contido, vemos um mundo vasto lá fora, povoado de outros pássaros, mas nenhum como o azul. A casa, lugar íntimo e protegido, guarda a luz e o calor que ele precisa. O dia começa, a luz que continua acesa, como farol, nos conta que deve ser bem cedo.
O silêncio eloquente da última dupla é quebrado quando o menino se volta para dentro da casa. O cheiro da refeição preparada pela mãe que delata seu cuidado, junto à planta e à roupa no cesto, nos apresentam uma casa que embora habitada e harmônica parece vazia – indícios que junto a um trabalho exímio de cores transmitem todas essas sensações e possibilitam ao leitor que estabeleça alguns pontos que lhes serão importantes para a leitura da história. Díaz coloca que “[a]s imagens representam um sistema ou uma linguagem onde atuam diferentes unidades. Uma delas é a dos indícios, os detalhes que nos adiantam parte de um conteúdo, que mantêm uma expectativa aberta ou que nos revelam outros significados.” (2007, p.113) Os livros-álbum são fartos de indícios, muitas vezes o leitor é orientado por eles, no entanto, creio que, quando pensamos o livro-álbum, as imagens são parte intrínseca de um sistema ou linguagem mais amplo, uma vez que se apresentam sempre em relação às palavras em uma sequência de páginas, e, dentro disso, os indícios se fazem unidades constitutivas do sistema que é o livro-álbum. Em o Diário das coisas impossíveis, Paula Schiavon brinca – seja conscientemente ou não –, com a leitura própria do livro-álbum e constrói um livro que é todo metalinguagem.
A leitura nos chama. Se víamos a cabeça do menino na dupla anterior, refletida no espelho da sala, agora vemos seu corpo, ainda vestido em pijamas, também refletido no espelho, desta vez o do quarto, onde o pássaro azul o observa da janela. Na porta, na face que fica dentro do quarto, um calendário: é 5 de junho, confirmamos o que lemos algumas páginas antes. A porta escancarada, a bola embaixo da cama, quem sabe sem uso por ora, uns dinossauros no chão. Embaixo do braço do menino, um caderno azul.
imagem interna
E a mãe, que vimos de passagem na página anterior, se define no texto escrito. Foram as palavras também que nos contaram que aquela pessoa que vimos quase de relance passando na cozinha com um pano na mão talvez fosse a responsável por aquele cheiro que, de lá, invadia a casa. É através das palavras também que começamos a desconfiar que ela deve trabalhar fora e por longas horas, porque não volta para jantar. Vamos saber mais adiante que não é só o jantar que ela deixa pronto antes de ir trabalhar, ela cuida da casa e do menino.
Ele, por sua vez, narrador-personagem, nos conta que passa o dia procurando pistas. Ao ler isso numa página em que vemos refletidos no espelho apenas sua testa e o topo de sua cabeça, denunciando que ainda é pequeno o menino, vemos na pia duas escovas de dentes em uso, mas se, curiosos, observarmos bem o armário com uma das portinholas aberta, vemos ali apetrechos para a barba – um pincel, uma gilete, um frasco que pode ser de loção. E, ao lado disso tudo, uma escova de dentes guardada. Quem mais mora nesta casa? Pistas de quê procura o menino? Daquele algo diferente que ele tem certeza de que vai acontecer?
Se virarmos a página encontraremos a primeira pista – o perfume (de novo um aroma) que vem do quarto da mãe. A mãe, cujo rosto vemos refletido no espelho, abre uma gaveta. Isso tudo pode ser visto pela porta entreaberta, como se espiássemos um momento de intimidade. Na parede de fora do quarto, outro espelho, em que se vê, refletida um sofá, a metade inferior de um quadro em que aparece o retrato de duas pessoas, que, cortado pela borda da página não nos permite saber quem são; além do retrato, uma pena e um pássaro partido ao meio. Tecelões de ninhos, os pássaros retornam sempre ao seu lugar. Também trazem notícias – em grego, pássaro foi sinônimo de presságio e mensagem divina (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2022), são símbolos de liberdade e de esperança. As penas formam asas, inspiram tal liberdade e esperança. Mas o que é esse pássaro rompido que aponta, de certa distância, o futuro do livro? Poderia ser a esperança partida ou restaurada?
Ao virar a página, vemos o menino dentro do quarto da mãe, a gaveta que ela antes abria, está aberta. Ele lê um bilhete e, como se voassem, espalhadas na página estão memórias da mãe, contidas em objetos que guarda na gaveta, aos quais devemos atentar. Por quê? Porque quando algo está à vista no livro-álbum, seja nas palavras ou na imagem, precisa ser considerado como peça para a leitura, caso contrário não estaria ali, ainda mais com tanto destaque. Fanuel Hanán Díaz reitera essa característica, trazendo uma analogia interessante:
Algo que pude comprovar depois de muitos anos trabalhando com o tema de leitura de imagens é que nenhum elemento dos livros-álbuns autênticos é gratuito. É como o que dizia Tchekhov sobre os contos: se no início é dito em uma página que havia um prego na parede, é porque ao final o personagem vai pendurar algo nesse prego. Todo elemento é um signo, todo elemento tem o seu valor. (2007, p.99)
Voltemos. O menino segura um papel em que algo está anotado. Nos objetos espalhados pela dupla, o bilhete ganha o destaque necessário para podermos ler as informações anotadas – uma chave importante para a interpretação dessa história – e logo abaixo a anotação do menino da segunda pista, devidamente numerada. Curioso esse horário de visitas, um curto intervalo de tempo. E “advogado”... Muitas pessoas interpretam esse bilhete pensando que seria o horário de visita do pai, separado da mãe. Mas me pergunto: apenas duas horas para ficar com o filho? Não seria uma visita restrita demais? Por isso o advogado? Mas o advogado participa de visitas supervisionadas? E os apetrechos de barba, relógio, masculino, a escova de dentes guardados? Os bonequinhos do bolo de casamento, aquele quadro em que se supõe haver um casal? Não me satisfaz a ideia de separação, preciso continuar a procurar os indícios que me levarão a entender a história, e viro a página. Ali encontro a terceira pista: “3. Palavras sussurradas com a vizinha” e elas sussurram enquanto penduram roupa no varal. Na página esquerda, o cesto com a roupa por pendurar tem certo destaque e uma peça azul chama a minha atenção. Demoro-me um pouco ali, distraída, até que me lembro de virar a página à procura de mais pistas.
A dupla que segue é silenciosa. Um silêncio pesado desta vez. Como se estivéssemos dentro da casa, emoldurado pela porta, aquele azul que havia prendido minha atenção, se revela: são calças. E, ao lado das calças do pijama do menino, elas se mostram grandes, um corte quadrado, são calças masculinas?
Passadas tantas páginas, a seguinte já traz o menino saindo de casa, mais convicto ainda de que algo diferente vai acontecer. De costas, virado para a mãe, se despede ou procura nova pista. A sombra dele, alongada, vira quase uma ligação direta com a mãe, que, com uma cesta vazia na mão o observa enquanto se distancia. Essa cesta talvez seja indício de que ela também está saindo, mais adiante, quando ela volta para casa, horas mais tarde, traz a mesma cesta cheia em uma das mãos. No caminho, o menino se dá conta de mais um sinal: “4. O jeito como ela me olhou quando fui para a escola.” Com essa pista, também sabemos que aquele lugar fechado, com janelas diminutas, grande, imponente no meio do nada, é a escola. Os vazios refletem a falta que acompanha o menino a cada passo.
Mais uma dupla muda para reiterar a sensação de vazio: nela, vemos três crianças de costas para nós, leitores, copiando, repetidamente, palavras que não sabemos ler. Paremos aqui. O que essa imagem nos diz? Talvez essa imagem, depois da que a antecedeu e antes da seguinte, em que o menino já saiu da escola e parece desesperançado, nos diga bastante da relação dele com a escola neste momento. O que você pensaria aqui? Bem, embora já tenha ficado bem clara ao meu leitor a minha opinião, ainda que eu tenha tentado manter certa classe, recorro aqui ao que me disse a autora quando da escrita desse texto:
A letra grega eu usei como elemento criptografado, meio código. Eles escrevem algo sobre o qual não têm compreensão, apesar de ser uma letra. Como alguns sinais que ele vê pelo caminho, ele sabe que [as letras] significam algo, mas ele não alcança totalmente, não tem conhecimento. Juntando todas as letras, os três escreveram o nome da deusa grega Elpis, que é a deusa da esperança (mas isso eu fiz mais pra mim mesma). É uma tarefa repetitiva de escrever no quadro coisas que não têm sentido no momento em que são escritas, mas que seguimos copiando porque é o que precisa ser feito, rotineiramente, e que a gente faz por costume. Outra coisa, tanto essa ilustração como a anterior eu pensei em representações não literais dos espaços, uma coisa mais sensorial, o registro de sensações que a nossa memória guarda do tempo de escola (um lugar fechado, que nos separa das possibilidades do dia lá fora, e que reúne uma quantidade significativa de crianças no mesmo local, fazendo as mesmas coisas, por alguma razão que não fica clara pra nós quando somos pequenos). (SCHIAVON, P., informação pessoal, 25/07/2023)
Bem, de Grego, não sei nada e foi apenas agora, meses depois do lançamento do livro, e muito mais tempo que isso de acompanhamento de sua criação, que me perguntei sobre as letras – achava, sim, que fazia menção ao Grego, mas não sabia que era Elpis, tampouco que ela é a deusa da esperança. Pura ignorância, eu sei, mas é essa mesma ignorância que nos leva a aprender, o que me consola um pouco, embora envergonhada. É curioso como no livro-álbum, como dissemos acima, cada detalhe, até aquele que não se entende de primeira (segunda, terceira, milésima) carrega significado. Eu, na minha ignorância, li aquilo como uma repetição de algo que não diz nada, que eles só reproduzem, o que também estava na intenção da autora. Quando mais sabemos ou procuramos, ou melhor, quanto mais nos atentarmos aos sinais, melhor e mais profunda será nossa leitura.
Na dupla que acabo de mencionar em que o menino aparece mais murcho, o pássaro azul o olha do alto. As sombras dos dois são imensas, a do menino, encolhida em si mesma; a do pássaro, em guarda, altiva. Também o vazio é imenso nesta dupla, a cidade parece fantasma. Não fosse a voz do menino contando seu desânimo, seria uma dupla fatal. Agradeço aqui a compaixão da autora com seus pobres leitores.
Na abertura seguinte, recuperado das longas horas de escola, o menino já recobra certa esperança e promete a si mesmo um pouco de magia. O problema é que o final da rua chega e nada de alguém de blusa amarela aparecer, ele estica o prazo do trato consigo mesmo para até o final da segunda quadra, e encontra bicicleta amarela, saia amarela, toalha amarela, mas blusa... não. O caminho que na ida pareceu tão breve agora se estendeu por ruas e ruas... e estica mais um pouco o trato “ou até a terceira quadra” na dupla de páginas em que cruza com uma mulher vestida com o que no meu tempo era uma japona, um gorro vermelho e galochas amarelas. A sentença que se esticou ao longo de três duplas – o que chamamos de frases “chiclete” (DUTHIE, 2015) – chega ao fim e culmina em um close nas galochas amarelas acompanhado do texto “vai ser um sinal” e do registro de mais uma pista “5. Bota amarela” em um fundo todo escuro, que diverge totalmente do que vimos até então. Essa cor escura seria uma virada? Será que ele já não está acreditando tanto nos sinais. O que nós leitores estamos pensando quando chega este momento?
E viramos a página, com menos segurança e, possivelmente, com a esperança um tanto abalada, assim como a do nosso menino parece estar. Qual não é nossa surpresa quando o vemos à frente de uma vitrine brincando com seu reflexo? No reflexo, ele parece vestir um chapéu que está exposto na prateleira. Na página esquerda, na porta da loja, o sinal ABERTO, na outra extremidade, à direita, o cartaz de um gato perdido.
Aqui vemos nos reflexos a face do que nos dá as costas. O menino que se admira na vitrine não se dá a ver diretamente: está perdendo as esperanças quando encontra esse novo sinal. Mas ele não nos diz isso de frente, olhando fundo nos nossos olhos. Em algum lugar talvez ele também duvide do que espera, ainda que saiba.
No meio disso tudo, o menino experimenta a fantasia – tem duplo sentido a palavra aqui, como verão mais tarde – e se equilibra, segurando firme seu fio de esperança. As palavras são claras: “Os sinais são como pistas.” Pois, o chapéu, que o chama para a vitrine, é um sinal, provavelmente mais forte do que a blusa que se transformou, no desespero do desejo, em botas.
Decididos a receber outros sinais, viramos a página. É o meio do livro. Na página da esquerda, vemos o pássaro azul, bem próximo, que, quebrando as fronteiras do objeto, sai de viés e, na pressa, deixa duas peninhas. O menino, na página da direita, olha para o pássaro. O ponto de vista faz com que a gente se sinta em cima, não muito alto, como se voássemos também. Não em fuga, não podemos abandonar o menino agora, principalmente quando ele revela que tem horas que anda afobado e perde os sinais. Enquanto isso, o pássaro escapa. De novo, o branco, devastador.
E continuo o caminho, junto ao menino, porque nem sempre os sinais são perdidos, só “às vezes”, e estou ávida por encontrar pistas e sinais que nos revelem mais desta história. Bem, aqui preciso parar. Mais uma dupla muito forte: na página da esquerda, aquele gatinho perdido do cartaz, volta para casa. De dentro de casa, sua dona abre a janela, olhando amorosamente para ele. Ao fundo, vemos o retrato de um casal. Um pouco abaixo, lemos: “Mas nos momentos de sorte...”. À esquerda, o menino se vira para ver um pai que acaba de passar com uma criança nos ombros, estão passeando com o cachorro. A pista? “6. O cachorro que eu sempre quis.” Já é de tardezinha, o sol deve ter se escondido, o céu arde, emoldurando a longa rua que levará o menino para casa, mas não sem antes revisitar sua memória, acompanhado do pássaro azul, que retorna do passado do livro. Note que o pássaro azul é imune a molduras e, por isso, ele atravessa a memória, segue firme no branco mais vasto e se perde no céu infinito.
É noite quando o menino se aproxima de casa. Caminhou por horas e se dirige lentamente para a sua casa, que se destaca entre as outras, iluminada e quente. Bem, se ele retorna para casa, de onde partiu pela manhã, e já não restam tantas páginas do livro, diminuo o passo, como o menino, com medo do que me aguarda ali. O dia até agora não se mostrou tão diferente, mas, pelo menos, ainda não terminou. Nem o livro, faltam umas boas duplas. Temo um pouco virar a página, porém pouco nos resta a fazer, e faço isso com o mesmo cuidado que o menino abre a porta, como se esse gesto fosse capaz de segurar a esperança. Essa página dupla em que ele abre a porta é enorme. Faz com que a gente sinta o peso da porta, o cuidado ao virar a maçaneta. Seu rosto, do qual só vemos parte, me envolve nas mais variadas emoções. Sinto o coração batendo um pouco mais forte e torço para que ele encontre algo ali. Viro a página, em ânsia, e o que encontro são cantos vazios. Diversos cantos da casa, o corpo do menino que procura, reticente, os ângulos que expõem a casa e o desejo. O pinguim da geladeira agora aponta para a direita, nos orientando a ir adiante.
No seu universo particular, o menino revisita as seis pistas enquanto as anota em seu diário. “O diário das coisas possíveis”, ele pensa, eu acho, enquanto afirma: “Não há pista que me escape.”
A dupla que segue traz duas imagens do menino muito semelhantes, em que o vemos, refletido no espelho, adormecido. A sombra da luz que vem de fora, pinta uma grade em seu rosto. Penso na janela que o emoldurava no início e em como, de certo modo, continua aprisionado em seu desejo. O diário sempre a seu lado. No sono do menino, o leitor se vê no vazio da casa e pode observar nos quadros dispostos na parede do sonho, que se mistura à parede da casa, de que matéria se fazem os sinais – das memórias que se dissolvem formando pequenas partículas que nos compõem misturadas ao desejo e à esperança. Se demore nesta dupla, meu leitor, como não deixo de fazer a cada leitura. Muitas peças vão se encaixar. Retome as páginas que já passaram, verifique se suas sensações ou hipóteses se confirmam. Mais tarde, chega a mãe com a cesta cheia, beija o menino afetuosa. Ele, depois de uma noite de sono, renova sua esperança.
O mapa das guardas finais nos mostra que o caminho de casa para a escola não apenas é curto, mas uma linha reta. No entanto, não é de se estranhar que o menino tenha vagado em busca de sinais por tanto tempo.
Ao longo de nosso percurso no livro, nós leitores encontramos diversas portas, janelas, sombras, reflexos e muito branco. É comum vermos portas e janelas nos livros-álbuns, passagens que permitem que transitemos entre os mundos real e da fantasia. São também espaços entre, como a página que aguarda ser virada, um elemento fundamental dessa linguagem, que não apenas dá ritmo à leitura, mas gera tensão, com toda a potência guardada no entre páginas, lugar de atuação do leitor, que atua também sobre o que não está dito nem por imagens, nem por palavras. São aberturas ao desconhecido, ao que está por vir.
As páginas, como as portas, dão acesso à revelação. E como portas, também separam e protegem ao mesmo tempo que permitem ou não ver. Movido pelo desejo e por uma insistente esperança, esse menino busca pistas, tentando adivinhar o que está por trás das coisas – de uma conversa sussurrada, de a mãe se perfumar, das portas entreabertas, sendo abertas ou escancaradas, portas que simbolizam ligação, possibilidade. Virando as páginas também experimentamos olhar através das frestas em vários momentos do livro, pistas deixadas pela autora para que juntemos as peças e os fragmentos que compõem a história. As frestas são espaços que a luz busca para penetrar onde não entraria de outra forma, talvez da mesma forma que faz a esperança. Coisas que não podem ser controladas, entram e saem conforme a luz penetra, dependendo do que se pode ver.
BIBLIOGRAFIA
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos – mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2022
DUTHIE, E., “El juego de traducir a Sendak”, https://triunfo-arciniegas.blogspot.com/2021/09/ellen-duthie-el-juego-de-traducir-sendak.html, 2015 (último acesso em 05/08/2023)
DÍAZ, F. H. Leer y mirar el libro álbum: ¿un género en construcción? Bogotá: Norma, 2007
GUTFREUND, D. “O branco e a virada da página: o silêncio no livro-álbum”. Dissertação (Mestrado em Design) FAU-USP, 2022
LARTITEGUI, A. G. Páginas mudas, livros eloquentes. São Paulo: Livros da Matriz, 2023
SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning Edições, 2019
Diário das coisas impossíveis
texto e ilustrações: Paula Schiavon
Páginas: 72
Formato: 20 x 28 cm
ISBN: 978-65-86167-06-1