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Um olhar para o mundo que vaza por todos os sentidos, 

entrevista com Sofia Mariutti e Yara Kono

Por Dani Gutfreund

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imagem cedida pela Companhia das Letrinhas

Vamos desenhar palavras escritas?, de Sofia Mariutti e Yara Kono, é um convite delicioso para se esbaldar de tanto brincar com as palavras. Palavras escritas e aquelas que as imagens guardam ou fazem ver, sem contar tantas outras que não aparecem explícitas no livro, mas nos saltam aos olhos enquanto lemos. 

E se eu pensava que era divertida a frase “meu jabuti gosta de caqui” – o que também é a mais pura verdade porque caqui é a paixão do João* –, agora faço reverência ao jabuti que acabou com toda jabuticaba, me assusto com o tanto de perigo que o prego traz e não consigo nem imaginar quanta pinta tem em cada pintura – palavras (essas e as outras) que nunca mais serão as mesmas por terem se tornado possibilidade de ser muitas outras. 

Se me demoro por mais uns microssegundos na ideia de que a formiga não pica porque não tem unha –  tempo que já se estendeu a muitos minutos nas tantas leituras que fiz desde que o livro chegou – logo sinto as cócegas que fazem suas patinhas como se centopeias andassem rapidamente pelo meu braço. Será que Sofia e Yara também pensaram nos pés da formiga, como eu?

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imagem cedida pela Companhia das Letrinhas

E, enquanto a gente pensa em todas as coisas que podem ser feitas com a língua, aparece um bando de pássaros sobrevoando a dupla de páginas: vão quase todos para a esquerda, apenas um está no contrafluxo – e talvez aí tenha uma dica do fazer poético: escolher o desvio, uma rota ainda não explorada, e olhar e olhar de novo, e, quem sabe, outra vez; ouvir o som das palavras, sentir seu peso, entender sua forma e subverter-se enquanto lida com elas. Porque talvez a poesia seja a concretização de um olhar para o mundo que vaza por todos os sentidos.

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imagem de Yara Kono

Uma página puxa a outra, enquanto a gente pensa sobre formas que se transformam, palavras que chamam outras, figuras que se repetem, imagens inusitadas que se acomodam perfeitamente inventando um novo lugar, sensações e sentimentos que transitam oferecendo novas – ou remetendo a antigas - experiências. Talvez, desenhar palavras escritas seja isso: sair dos lugares-comuns e criar novos.

Na entrevista que segue, Sofia e Yara contam um pouco de seus processos, falam da construção poética desse infinito que juntas costuraram com o tal do fio invisível que tece os melhores encontros.

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imagem cedida pela Companhia das Letrinhas

DG: Sofia, conta um pouco como surgiu esse livro, a história por trás dele?

SM: Esse livro surgiu como um poema, um ready-made, que começou a ser escrito em 2019, quando a Mira, minha primeira filha, começou a falar. Antes de juntar duas palavras, ela olhou um dia pra uma cobra de madeira, desmembrada em pequenas partes, e disse "trem". Entendi ali que ela tinha feito sua primeira metáfora, que a metaforização é tão inata quanto a própria linguagem. Nunca vou saber se ela conhecia a diferença entre as duas coisas, se estava querendo me dizer "essa cobra parece um trem", mas comecei ali a colecionar esses acasos, confusões, brincadeiras, e fui montando um poema meio infinito. Mudei várias vezes a ordem dos versos, editei e cortei muitas frases, novas entraram. E um dia mostrei o poema pra Alice Sant'Anna, que me sugeriu transformá-lo em livro infantil. Para a minha surpresa, a Mell Brites - editora da Companhia das Letrinhas na época -  abraçou a ideia, então trabalhei com ela e o Antonio Castro pra pensar uma narrativa dentro das frases, escolher quais funcionariam ilustradas. E então chegamos na Yara. É engraçado que hoje, quatro anos depois de eu ter começado aquele poema, a Mira está se aventurando de fato a "desenhar palavras escritas", que entendo como a metáfora que ela inventou para "escrever". 

 

DG: Yara, conta um pouco como foi quando o texto chegou para você?

YK: O convite surgiu através da editora. Já tinha colaborado com a Companhia, ilustrando o Em cima daquela serra, com texto/poema do Eucanaã Ferraz, que adorei fazer. Além disso, gostei muito da ideia e do texto da Sofia e decidi abraçar esse desafio. Também houve empatia no nosso primeiro encontro por videochamada, e acho que isso contou muito. Vivo em Portugal e a nossa comunicação sempre foi à distância.

 

 

 

 

DG: Como foi o encontro das palavras com as imagens. O que aconteceu a partir dele?

SM: Esse foi meu primeiro trabalho com livro ilustrado, e tive sorte de entrar nessa parceria com uma ilustradora experiente como a Yara, e também com profissionais cuidadosas como a Helen Nakao e a Camila Mary, da Companhia das Letrinhas. Achei incrível esse processo porque quando se trata de um texto poético, a leitura é muito aberta, tanto do leitor final quanto da ilustradora, que pensava em caminhos completamente diferentes dos que eu tinha na cabeça. Tipo quando vem a sequência "O que tem no seu olho?/ Lá dentro?"/ "É uma estrela e ela gira igual ao redemoinho da banheira!" - e a Yara escolhe ilustrar com uma menina de pernas pro ar, dando uma estrela no chão. Essa ideia foi uma surpresa pra mim, coisa de cinema mesmo, corte brusco de plano, trouxe muito movimento pra página, e notei que de certa forma ela espelhava na imagem o processo do texto poético - nesse caso, brincando com o duplo sentido da palavra "estrela". Foi bom conversar, contar o que tinha imaginado em alguns casos para dar ideias - a Yara teve muita abertura e generosidade e nem acreditei quando peguei o livro na mão, as imagens estão deslumbrantes.

YK: Acho que fluiu naturalmente. Para mim, as palavras podem ter n maneiras de serem lidas, interpretadas e ilustradas, e adoro explorar essas inúmeras formas até chegar àquela que julgo ser a mais indicada, o melhor caminho a seguir (e que pode não ser a ideal). Por isso, quando o esboço chegou à Sofia, Camila, Antonio, Helen… já tinha feito muitos esboços, explorado muitos caminhos.

Apesar de ter tido muita liberdade na interpretação do texto, com a Sofia e a equipa da Companhia, algumas ideias para as ilustrações foram afinadas, outras foram revistas, trocámos a ordem do texto, trocámos a ordem das ilustrações… também foi importante saber as ideias da Sofia para algumas imagens. A página da pétala / janela é um exemplo.  

O texto inclusive foi desenhado com Letraset, que utilizei nas ilustrações (a trabalheira ficou do lado da equipa da Companhia das Letrinhas). Outro momento em que há sempre muita colaboração é a escolha da capa.

"a metaforização é tão inata quanto a própria linguagem"

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imagens de Yara Kono

Sempre procuro dar liberdade ao leitor para interpretar as ilustrações e, de alguma forma, desafiá-lo também.

DG: O livro é todo pensamento poético e filosófico e cheio de humor também. É como uma coleção de coisas que passam despretensiosamente pela cabeça, uma conversa com as próprias palavras, com a linguagem.  Como foi juntar todas elas e transformá-las em livro? Contem um pouco de seus processos.

 

SM: Pra mim foi muito difícil, grandes crises! Eu tinha medo de o livro não ter coesão, porque passeava por muitos temas e formatos e tons. Algumas frases brincam com as palavras, algumas falam de bichos, outras trazem perguntas existenciais. Alguns versos são bem-humorados, outros bem melancólicos. Quis reescrever tudo, depois des-escrever o que tinha reescrito. A Mell e o Antonio acompanharam o drama. Foi difícil criar um fio que unisse tudo aquilo, não é um fio tão evidente, é um fio invisível, e acho que as imagens da Yara ajudaram muito a construir essa narrativa visual, repetindo elementos, bichos, personagens.

YK: Depois de apresentar os esboços e ter a aprovação de todos, vou pensando na técnica, o material, a paleta de cores… e as primeiras ilustrações vão surgindo.

Na altura estava a montar uma exposição com a Maria Remédio, amiga e ilustradora talentosa, para o PIM! no âmbito do Folio, em Óbidos, e estávamos a usar cartolinas, papéis coloridos e Letraset, para desenvolver um dos núcleos da exposição. Decidi, então, contaminar este projeto que estava a começar, com os materiais que já estava a utilizar.

DG: Gosto muito do lugar em que colocam o leitor. A cada página, a vontade de continuar a conversa cresce, ao mesmo tempo em que dá uma vontade imensa de ver o que virá nas próximas. Fico imaginando as conversas que tiveram. Querem contar uns segredos dos bastidores?

 

YK: Sempre procuro dar liberdade ao leitor para interpretar as ilustrações e, de alguma forma, desafiá-lo também. E com um texto tão poético, não foi difícil encontrar essa linguagem menos literal para algumas ilustrações.

Gosto muito de acrescentar elementos que vão surgindo no meu dia-a-dia e que de alguma forma chamam a minha atenção. Decido, então, introduzi-los nos projetos que estou a desenvolver, como o brinquedo do meu sobrinho André, as Andorinhas no céu, a fachada de uma casa do bairro onde vivo, um gelado que comi, um livro que li ou um filme que vi e também gosto de acrescentar elementos recorrentes, que vão aparecendo em outros projetos, como o gato Afonso, o elefante, a joaninha, a formiga ou ainda a chávena de café.

Também gosto de criar uma narrativa visual paralela, mesmo que o texto não peça isso. Por exemplo, o cão e a sua dona, na primeira dupla de páginas, voltam a aparecer em outros momentos do livro, incluindo a dupla final. Como esse, há outros, mas deixo para o leitor descobrir.

SM: Achei incrível a Yara se inspirar na cobra de brinquedo do sobrinho dela pra ilustrar a cobra-trem, antes de eu dizer pra ela que foi assim que a metáfora nasceu, com uma cobra de brinquedo. Foi um encontro absoluto. No começo debatemos mais as páginas, depois elas pareciam já vir prontas. A página que dá título ao livro foi talvez a mais difícil de fechar, e assim foi ganhando várias versões bem lindas. Na página da janela, a gente acabou mudando o texto pra não repetir a ilustração, o texto original era "Que tal abrir a outra pétala da janela?", mas como a janela já estava ilustrada, decidimos tirá-la do texto. E tem muitas, mas muitas frases que acabaram ficando de fora, tipo essa que eu amo: “É neve ou nuvem?”.

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imagem cedida pela Companhia das Letrinhas

DG: A presença de figuras de linguagem, assim como a etimologia das palavras, os sons e as formas, tanto na imagem quanto na palavra, é muito marcante. Vocês poderiam comentar um pouco isso?


YK: O texto da Sofia deu esse ritmo, eu só acompanhei a melodia.

SM: Pois é, acho que é isso que faz de "Vamos desenhar" um livro-poema, essa densidade das imagens e sons, né? Eu mencionei a metáfora que está em várias páginas: "a cobra é um trem", "essa tartaruga tem um cogumelo em cima dela". O cogumelo toma o lugar do casco, ou o guarda-chuva, ou a xícara: são deslocamentos. E a ilustração também faz metáforas visuais, a bochecha da cobra vira o brinco da vaca, a boca da vaca vira o topete do pássaro. Deve ter coisa que ainda não vi escondida no livro. Tem várias outras figuras de linguagem, tipo a paronomásia: "O jabuti acabou com toda a jabuticaba". Acho legal pensar que poesia é repetição, a repetição dá o ritmo, e tentei trabalhar isso nos sons, numa sequência sobre os pássaros ou na entonação das perguntas que vão e vêm. E a Yara trabalha muito bem essas repetições na imagem, ditando o ritmo do livro-poema. 

DG: E tem um quê surrealista, nonsense nessas pílulas (?) poéticas que fazem a gente querer ficar à deriva com elas. Podem falar um pouco disso e emendar nas influências de vocês?

SM: Tem aquela frase "Não tá frio não, tá sábado!", que traz esse nonsense de trocar as palavras quase aleatoriamente no eixo paradigmático né? Não tá frio não, tá quente/ tá morno/ tá gelado/ tá pelando - essas seriam palavras esperadas, mas nunca "sábado", e a quebra da expectativa cria esse efeito poético que faz pensar, ah então sábado é sempre calor, sábado é dia de praia ou de parque. Lembrei de um livro lindo do Liniers agora, Os sábados são como um grande balão vermelho, em que só chove! Quanto às influências, no meu caso tudo sempre acaba voltando pro Manuel Bandeira, foi dele o primeiro ready-made que li, e "Vamos desenhar" posso dizer que é um "Poema tirado da boca da minha filha", que às vezes parece imitar o outro Manoel, de Barros, como quando diz sobre a cobra que ela "passa tristeza, ela tem a tristeza do rio". Tenho ouvido muito aquela música da Paula Toller, “Oito anos”, que usa o mesmo recurso do ready-made, a MPB é uma baita influência. Na minha formação, tem também muito Augusto de Campos, Leminski, Alice Ruiz, Arnaldo Antunes, as bandas todas da vanguarda paulistana, Itamar Assumpção, Grupo Rumo, também Palavra Cantada, José Miguel Wisnik, e adoro ler poesia contemporânea (a lista é sem fim!). 

DG: O livro é super contemporâneo e desafia estereótipos. Queria que falassem um pouco da produção poética para a infância, autores que lhes agradam, caminhos interessantes.

SM: Puxa, muito obrigada por essa leitura tão atenta e generosa, Dani! Eu falei do Liniers, né? Eu amo os livros infantis dele, são incríveis, ele mexe com metalinguagem com um domínio total no livro Escrito e desenhado por Enriquetta. Sou fã também do livro Mágica, da Aline Abreu, que trabalha com repetição de sons e de imagens (bem nonsense também), Bia e o elefante, da Carolina Moreyra e do Odilon Moraes, que tem um final inusitado e poético, adoro também o Amoras, do Emicida e do Aldo Fabrini, que é um poema de arrepiar com ilustrações arrebatadoras. A lista é infinita, a cada dia estou curtindo mais esse universo da criação poética para a infância, que alegria fazer parte dele agora!

YK: Posso citar os últimos livros de poesia que li e gostei muito. Não sou ninguém, poemas de Emily Dickinson, traduzidos por Augusto de Campos, e Estar em casa, de Adília Lopes. Também tenho seguido e lido uma revista literária portuguesa chamada “Limoeiro Real”, editada por Inês Viegas Oliveira e Mariano Alejandro Ribeiro, amigos queridos, e que dedica muitas páginas à poesia, incluindo conteúdo para o público mais jovem. Quanto aos livros ilustrados… com exceção dos títulos que claramente têm uma narrativa, eu diria que grande parte é pura poesia, incluindo os

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Estudos de capa, imagens cedidas por Yara Kono

DG: Muitas pessoas não sabem qual ou quais os caminhos para se aproximar da poesia, seja na palavra ou na imagem. Vocês teriam sugestões?


SM: Acho que tem a ver com o tempo. É preciso abrir espaço na vida para fazer e ler poesia. Mas mesmo quando a gente não abre, a poesia vem rasgando o cotidiano. Lembro de a Alice Sant'Anna dizer uma vez, acho que numa mesa da FLIP, que pra ler bem um poema é preciso lê-lo bem devagar. Acho que é isso, passar tempo na frente de uma palavra, uma página, um quadro, ler e reler um livro até enxergar a poesia que está lá. Muitas vezes a poesia foge na primeira leitura, e o rio da segunda leitura realmente nunca é o mesmo. A criação também tem a ver com isso, dilatar o tempo para enxergar as coisas, abrir a escuta, conviver com os sons na cabeça até chegar numa forma final. Gosto do que o Drummond fala: "Não forces o poema a desprender-se do limbo." E bem, cada leitor precisa encontrar o texto que fala com o seu íntimo. 

YK: Acho que há uma aura que acompanha os textos de poesia que os associa logo a textos de difícil leitura e interpretação. E realmente às vezes é preciso ler, reler um texto, sobretudo quando há liberdade poética. Mas não é um bicho de sete cabeças como pintam por aí. Eu sugiro ao leitor ler e interpretar o poema à sua maneira. E podem até começar pelos livros sem texto (livros-imagem), que geralmente são muito poéticos. Primeiro estranha-se, depois, entranha-se, citando o slogan criado pelo Fernando Pessoa.

* João é nosso jabuti, que tem 57 anos.

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Vamos desenhar palavras escritas?

Texto de Sofia Mariutti

Ilustrações de Yara Kono

Páginas: 40
ISBN: 9786581776350
Selo: Companhia das Letrinhas

Companhia das Letras

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