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Luciana Araujo Marques

100% autobiográfica

por Janette Tavano

Jornalista, mestre em Letras pela USP, doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp, escritora e mediadora em eventos literários, Luciana Araujo Marques descobriu ainda pequena que “escrever era algo importante porque guardava aquilo que não se deixava perder: de receitas de bolo a cadernetas de endereços, de cartas de parentes à caligrafia da avó em cadernos guardados numa caixa junto dos santos na penteadeira”. Passou então a ser a menina que lia nas entrelinhas e escrevia “cada coisa”.  Aos 17, chorou com Vidas secas e pensou que um dia poderia escrever um livro que salvasse a cachorra Baleia. Esse livro ela ainda não escreveu, mas há outros, “um adiantado e outro que já vem nascendo”. E há Graciliano, que continua lhe causando espanto.

Luciana conta um pouco sobre tudo isso para o Lugar de Ler, numa entrevista que cresceu um monte e quase virou um livro.

primeiro capítulo,

o fascínio pela palavra

“Não cresci rodeada de livros nem de leitores. Em casa sempre teve uma Bíblia e a biblioteca inteira que ela reúne me foi valiosa como leitura no começo da adolescência. Ainda hoje muitos de seus livros têm impacto grande sobre o que reconheço quando leio e escrevo – de modo devoto, mas laico, sem ser profissão de qualquer fé –, porque estão ali imagens primordiais que reencontramos nos escritores Raduan Nassar, Victor Heringer, no catolicismo negro da Conceição Evaristo, enfim, do mais nosso e contemporâneo ao mais longe no tempo e lugar onde o legado judaico-cristão estendeu seus tentáculos. O que havia desde muito cedo em mim era um desejo de ter acesso à palavra. Intuía dos registros domésticos que escrever era importante porque guardava aquilo que não se deixava perder: de receitas de bolo a cadernetas de endereços, de cartas de parentes à caligrafia de minha avó em cadernos guardados numa caixa junto dos santos na penteadeira. Depois, quando me disseram que havia palavras que eram para interpretar para só assim algo se revelar, rolou um estalo. Ainda que tivesse as histórias e piadas do meu avô boca-suja, que não sabia ler nem escrever, como eu naquele tempo anterior à escola, me iniciando oralmente na malícia empregada em certas construções, eu queria muito era escrever, anotar as expedições no quintal comum, mas, sobretudo, também poder sair dele. E as palavras eram tipo um bilhete para fora dali.” 

 

 

 

 

 

 

linhas e entrelinhas

 

“Na escola, esse primeiro espaço que rompe mais fundo com o familiar, um episódio me marcou e pode ter a ver com isso que tento dizer. Jacira, que tinha sido a professora de nossa turma desde a segunda série, engravidou quando estávamos na quarta. No seu último dia de aula antes da licença, apresentou a substituta à classe, de maneira geral, mas também específica. A professora Jacira, que era seríssima e muito rígida, disse: “a Luciana lê entrelinhas e escreve cada coisa”. Com dez anos de idade, não saquei bem o que eram “entrelinhas”, mas aquele “cada coisa” soou bem, porque veio seguido de um sorriso que nunca esqueci e que era raro na boca dela.

Não conto tudo isso sem certo embaraço e o risco de estar inventando um começo que não é tão óbvio, porque não acredito em ninguém que escreva sem ser leitor, jamais. Mas meu desejo de escrever, sim, foi anterior à consciência do papel da leitura como parte desse processo. Quando me dei conta disso, a vontade de ler era imensa, mas o caminho não necessariamente estava aberto. A literatura despontava ainda tímida nos livros didáticos ou em uma ou outra leitura obrigatória. Nossa escola (estadual) não tinha biblioteca e só fui pisar numa livraria quando comecei a ganhar meu próprio salário aos 14 anos. Naquele mesmo ano, um poema meu tinha sido selecionado para concorrer entre as escolas da região e ganhei uma medalha - hoje já enferrujada - e o livro Flor de poemas, da Cecília Meireles, com dedicatória escrita pela professora de Língua Portuguesa e pela diretora. Escreveu assim a Shirley no exemplar que guardo até hoje como o primeiro livro de poemas de uma biblioteca que apenas começava e demorou muito para aumentar: “Parabéns pelo 1º lugar. Continue escrevendo e revelando o ser humano e a poetisa (sic, rs) linda que você é”. 

Eu sei que é invertido e um pouco estranho que tenha sido assim, mas foi. Então não sei bem se a literatura entrou na minha vida ou se fui inventando ter sido chamada para dentro dela sem reconhecer de quem foi, afinal, a primeira voz. É fato que no colegial uma nova realidade se abriu para mim, mas esta é uma outra e longa história, que, finalmente, inclui uma biblioteca, mas seria mentira dizer que foi aos 15 que essa paixão começou. Não foi. Todo um terreno estava preparado.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

as escolhas concretas

Escolhi o jornalismo aos 11 anos “porque era uma forma de escrever e ter um salário”, repetia iludida. Mesmo anos depois, quando fui prestar vestibular, a faculdade de Letras não me parecia a melhor opção, o que tempos depois foi uma espécie de arrependimento. Houve no cursinho uma professora plantonista de Literatura, que era aluna da USP, que ainda tentou me convencer, porque via meu amor pela literatura, mas fui turrona, queria trabalhar escrevendo, repetia. Mas, sim, apesar dessa obsessão em particular com a escrita que poderia contemplar qualquer tema, quando entrei na graduação da Cásper Líbero, o meu foco já estava totalmente guiado para as humanidades e artes em geral, mas sobretudo para a literatura. O animador é que já na recepção aos calouros, o então coordenador do curso de jornalismo tratou de avisar: “quem acha que vai trabalhar com cultura, pode esquecer”. 

Na minha classe do primeiro ano estudava a Adriana de Oliveira, que estava na segunda graduação e me chamou para trabalhar com ela na assessoria de imprensa da editora Melhoramentos. Portanto eu tinha 19 quando passei a conhecer a feitura e divulgação de um livro, digamos, de dentro do forno. No ano seguinte, comecei a trabalhar no jornal Último Segundo, do iG. E por lá fiquei até me formar, fazendo de tudo: era redatora de Mundo no instante em que aconteceu o ataque às Torres Gêmeas; repórter de Cidades quando assassinaram Celso Daniel [prefeito de Santo André], mas também fiz cobertura de Flip e sempre dava um jeito de escrever para o iGLer, com a petulância de quem se sentia no direito de resenhar uma tradução de Beckett pelo Fábio de Souza Andrade lançada pela Cosac Naify, entrevistar tradutores como Sérgio Molina e Fernando Py e escrever muitos textos não pautados por outros sobre literatura em geral. Eu agradeço muito toda essa petulância juvenil. 

No terceiro ano, tive aula de Jornalismo Cultural com o Marcelo Coelho, colunista da Folha, que a partir do ano seguinte seria o meu orientador de Trabalho de Conclusão de Curso. Um encontro decisivo para mim. Minha ideia inicial, que vinha apurando desde 2000, era fazer um livro reportagem sobre a literatura de periferia e prisional, que ganhava destaque no mercado editorial naquele tempo. Logo nas primeiras reuniões, o Marcelo me convenceu de que o que eu tinha na mão era uma hipótese para um trabalho de crítica literária. Isto é, estava mais para uma monografia do que para uma reportagem, em termos das opções formais que o TCC tinha que ter. Ele tinha toda razão e assim nasceu o De dentro: escritos da periferia e da prisão, que depois se desdobrou no mestrado que defendi em Teoria Literária na USP, mais centrada na estreia de Ferréz, e simultaneamente na oportunidade que foi ter sido selecionada entre mais de 600 inscritos no Rumos Itaú-Cultural de Crítica Literária Brasileira, que resultou no livro Protocolos críticos (Iluminuras), que reúne os textos dos selecionados para a edição. O meu é uma leitura do “Cela forte”, do ex-detento que faleceu este ano, o Luiz Alberto Mendes. O conto é claramente um episódio já narrado por ele no Memórias de um sobrevivente, mas formalizado de outro modo. Esse manejo do autobiográfico com os recursos da ficção me fascina.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

cada vez mais dentro da literatura

“Mas retomando uma certa cronologia: pouco depois de concluída a graduação, em 2004, saí do iG para o caderno Ilustrada, da Folha, na cobertura e pauta de livros e dança; fui colaboradora da revista EntreLivros; voltei para o iG como editora de home; em seguida trabalhei na comunicação da São Paulo Companhia de Dança, onde se encerrou este ciclo mais jornalístico, em dezembro de 2008.

Em janeiro de 2009, retornei para dentro de uma editora, mas agora no departamento editorial da Cosac Naify. Foram dois anos internamente e outros como colaboradora. Ali trabalhei em livros do Beckett, do Tolstói, do Manuel Bandeira, na biografia de Clarice etc. Em seguida, trabalhei nas editoras Estação Liberdade e Abril Educação, na Galeria Nara Roesler e na Bienal de Arte, além de ter realizado serviços de edição, preparação e revisão como freelancer para várias editoras e instituições, como Companhia das Letras, IMS, Globo, PubliFolha, Objetiva, Planeta, V&R, Terceiro Nome e por aí vai. 

Desde 2015, quando iniciei a pesquisa de doutorado na Unicamp, passei a dizer mais “não” a esses trabalhos editoriais em particular e a me dedicar com maior exclusividade à tese, às aulas, à leitura crítica, às mediações literárias, ao acompanhamento mais próximo de pessoas que me procuram para ler seus textos em desenvolvimento e, claro, à escrita literária. Aí inclui a Revista Pessoa, Quatro Cinco Um, Flip, Off-Flip, Biblioteca Mário de Andrade, Sesc, entre outros. Entre o final de 2018 e ao longo de 2019, retornei à Galeria Nara Roesler, em funções mais institucionais, mas também com os livros dos artistas. Foi uma honra que a despedida tenha sido editar o livro que reunia desenhos que o Sergio Sister fez na prisão durante a ditadura militar, mesclando-se assim sua primeira fase pop com o trabalho incrível que reconhecemos como o dele hoje.  Enfim, eu precisava voltar com foco total para a tese e às leituras... Mas tenho um interesse muito grande pelas artes visuais, talvez por conta de uma personagem (risos). Antes de escrever meu projeto de doutorado sobre o Infância, do Graciliano Ramos, tinha na manga uma comparação entre os textos do Nuno Ramos e do Rodrigo Naves, como escritores, mas que, claro, tem um diálogo muito forte com os trabalhos do artista e do crítico de arte, respectivamente.”

ler e escrever sobre leitura

“Nunca tive a intenção de acompanhar os lançamentos de livros de modo amplo, frenético e que desse conta de recortes muito díspares. Jamais assinaria uma coluna semanal de resenhas abarcando lançamentos gerais, por exemplo. Entendo o meu trabalho nesse campo como o de uma pesquisadora que tem como foco uma articulação de leituras voltadas para a literatura brasileira pautada por uma visada bastante ensaística e centrada na forma que o texto crítico tem como uma autoria. Procuro obsessivamente a minha própria voz nessas leituras. Tudo isso se cruza intimamente para mim numa construção de repertório em termos de um aparato teórico e histórico, mas também de interesses muito íntimos que ficam ali decantados. Então, quando resenho O sol na cabeça, do Geovani Martins, em 2018, ou Torto arado, do Itamar Vieira Jr., em 2019, por exemplo, isso não se dá porque estou em termos jornalísticos atenta a quem vai bombar naquele ano, mas por uma estreita relação com tudo isso.

Não significa que eu não acompanhe outras tradições e o que me é alheio em termos formais ou biográficos. Só quero dizer que há obras incríveis, que admiro, mas sobre as quais não me meto a escrever sobre, mesmo que muitas delas estejam inscritas em mim. E estão. Quando leio Proust, não sou uma crítica de Proust, mas sua obra me marca profundamente, e quando cito Em busca do tempo perdido em minha tese é porque vem à tona como arcabouço de reflexões sobre o tempo, mas o faço a partir do trabalho de um tradutor, entende? É diferente, a meu ver, do compromisso que se tem quando se domina uma língua e se busca compreendê-la no interior de uma tradição literária, ainda que a questão dos contextos históricos sempre me pareça incontornável. Já na coluna da Revista Pessoa, a proposta era escrever a partir do que eu lia de modo bem livre, ainda que no começo eu estivesse mais presa, porque não sabia até onde podia me soltar. Conforme fui tendo os retornos da editora Mirna Queiroz, fui descobrindo um espaço de muita liberdade ali. Acho que se uma hora eu retomar, vai ser ainda mais explodida essa fronteira entre a leitora e quem quer escrever sobre leitura experimentando. Então tinha mesmo um tom de crônica de leituras. Foram mais de trinta textos nessa toada, onde podia falar de algo que acontecia no meu dia a dia, mesclando-se a leituras de Alejandra Pizarnik, Virginia Woolf, Piglia, Blixen, Borges, além de uma entrevista com a Isabela Figueiredo, e, claro, presentes também muitos brasileiros como o Raduan Nassar lido pelo Estevão Azevedo, Flávio de Carvalho, Drummond etc.  

Para não se dizer que em outros espaços não falei com ou de estrangeiros, destaco que nos tempos de Folha entrevistei o Gonçalo M. Tavares, quando ninguém o conhecia por aqui ainda, e o Mia Couto. Depois, para a EntreLivros, o David Grossmann. Recentemente resenhei para a Quatro Cinco Um o belíssimo Luanda, Lisboa, Paraíso, da Djaimilia Pereira de Almeida. 

Fico aqui pensando, talvez, por ter transitado profissionalmente em lugares tão diversos, onde tudo acontecia de modo mais acelerado e pautado pelas relações entre os veículos de comunicação e o mercado editorial, mas sem ter deixado de me dedicar ao trabalho mais a seu tempo, aprofundado e até certo ponto bastante recolhido, na academia, as coisas foram acontecendo para mim muito na prática e não como um ideal que me parecesse inatingível. Como comentei, com vinte e poucos anos já me metia a resenhar, entrevistar e assim por diante. 

Visto assim, tudo parece muito planejado, mas foi mesmo uma insistência de anos, bastante sacrificada por trabalhos que exigiam a minha melhor energia, além de episódios profissionais que na época me pareceram verdadeiras derrotas na área, mas depois se revelavam momentos decisivos para retornar ao que era muito meu e para o que não necessariamente seria, digamos, contratada e paga. Mas sempre tem o dilema das contas a pagar. Meu mestrado na USP e meu doutorado em andamento na Unicamp não contaram com bolsa, de modo que nunca tive a opção de uma dedicação totalmente exclusiva a esses trabalhos. As resenhas e entrevistas remuneradas são muito esporádicas. Isso sempre me obrigou a trabalhar em outras frentes, nem sempre só com aquilo que gosto, mas invariavelmente com a palavra. E cada vez mais só com aquilo que respeito e acho que posso fazer bem ou, ao menos, me esforçar para isso, sem me sentir muito desvitalizada no que me é essencial.”

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A medalha sobre a dedicatória da professora Shirley e a assinatura da diretora Amanda no exemplar do Flor de poemas.

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A monografia De dentro: escritos da periferia e da prisão e o livro Protocolos críticos, resultado do Rumos Itaú Cultural de crítica. No canto da foto, um livro sobre sertão que tem um texto de Luciana sobre Graciliano.

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A turma da segunda série, primeiro ano com a professora Jacira: Luciana aparece na última fila, a quinta da esquerda para a direita.

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Em destaque, o diário de capa preta que integrou o projeto de listas com dez coisas da vida, da escritora Diana de Hollanda, que escreveu: “A lista foi escrita sobre a capa de um caderninho, um diário de 2007, com a ideia de dar um fundo de asfalto. Isso porque, quando menina, ela gostava muito de escrever com resto de gesso/resto de tijolo no asfalto”.

a epígrafe

“Nunca vou esquecer de quando li Vidas secas pela primeira vez. Foi só aos 17 anos, mas não sabia ainda o que acontecia com Baleia. Graciliano Ramos me fisgou ali. Fui aos prantos ler o trecho para minha mãe que já estava deitada àquela hora da noite e não entendeu muito bem o que se passava comigo, tamanha comoção. Graciliano iria odiar isso. Ele fez algumas declarações de desconfiança sobre o que tinha escrito quando comentavam com ele que tinham chorado por causa do livro. O velho Graça dizia que não usava exclamação, pois não vivia se espantando. Pois me dedico há anos à sua obra e vivo me espantando. Pensei comigo já naquela época: quero escrever um dia um livro para salvar a Baleia. Mas ela continua a morrer. E isso é ainda um tema meu, que ainda não publiquei. Certa vez, minha mãe me viu no quarto lendo o Angústia (também de Graciliano) e ficou preocupada por causa do título (risos).

Naquela tal monografia orientada pelo Marcelo - que acredito ter me iniciado na pesquisa e leitura crítica -, escolhi como epígrafe um trecho do “Prefácio para uma antologia”, escrito pelo Graciliano quando foi convidado a selecionar contos Brasil afora: “Depois da tentativa falha, isento-me de apresentar a alma de um criminoso, a de um seringueiro, almas que desejei expor, não vistas de fora para dentro, mas de dentro para fora, lançadas por gente pequenina, rebotalho social. Infelizmente os prisioneiros e os trabalhadores da borracha não escrevem”. Carreguei comigo esta epígrafe depois para a dissertação de mestrado e esse mesmo trecho retorna agora na tese de doutorado para lançar luz a uma outra reflexão sobre a perspectiva da gente pequenina, mais próximas do chão em termos de escolhas lexicais do autor, e também do alcance do olhar do menino como personagem de si, em Infância.”

 

o interesse pela literatura brasileira

“Eu, como todo mundo que passa por uma educação formal no Brasil, fui submetida aos clássicos da literatura brasileira na escola, mas ao contrário de criar uma resistência sobre essa imposição, gostei e queria mais. Comentei que no colegial a biblioteca entra na minha vida, pois é... É que no que hoje se chama Ensino Médio, eu consegui uma bolsa no Colégio São Luís. Então, aos 15 anos, ia de Taboão da Serra para a região da av. Paulista, de segunda à sexta, para estudar lá. Não vou inventar que lia nas mais de duas horas de ônibus, entre ida e volta, porque me dá náusea ler em movimento - e muitas vezes as viagens eram feitas em pé -, mas emprestava muitos exemplares ali. Era realmente algo inédito na minha vida e aproveitava muito a oportunidade. Minha casa seguia vazia de livros meus, mas eles estavam sempre presentes na minha rotina. No primeiro ano, eu trabalhava numa loja da rua Teodoro Sampaio e quando não tinha cliente, lia; a partir do segundo, passando pelo terceiro e o ano de cursinho, trabalhava numa escola de inglês das 8h às 14h, incluindo os sábados, então, por volta das 15h20, chegava à biblioteca do colégio e ficava por ali até dar o sinal para o início das aulas, às 19h. 

Os autores estrangeiros foram entrando mais tarde na minha vida, já ao longo da graduação em jornalismo e no acesso à biblioteca da faculdade. Mas como a ideia era ser uma jornalista cultural, e eu não tinha fluência em outras línguas, comecei a acompanhar a literatura contemporânea brasileira. Em 2000, quando o Ferréz lançou Capão pecado, comecei a notar uma movimentação no que se chamou literatura marginal e que tinha como espécie de precursor o Cidade de Deus, do Paulo Lins, de 1997. Foi aí que fui juntando material para minha reportagem que acabou virando a monografia já mencionada e depois deu na dissertação de mestrado na USP.”

Graciliano

 

“Para a tese de doutorado, num primeiro momento, pensei em diversificar e ir para um diálogo com as artes plásticas, mas havia outras coisas já muito mais entranhadas, que dialogavam com o que já tinha feito até ali, mas de modo menos óbvio. Alguém pode perguntar: o que tem Graciliano, um canônico branco, que ver com a literatura de periferia, dos subúrbios? Nunca me saiu da cabeça que os retirantes de Vidas secas eram os avós dos personagens que migraram para as beiras das grandes metrópoles. O que Graciliano teria a ver com a situação de um preso comum, sendo ele um preso político? Bem, ele próprio dá essa resposta nas Memórias do cárcere. O que uma coisa e outra pode ter que ver com Infância? Bom, aí, quando minha tese ficar pronta ficará claro para quem tiver o interesse de ler (quem participar do curso que vou ministrar no Lugar de Ler, em setembro, também entenderá por onde caminho). E, sim, esse caminho com as memórias de infância de outros escritores deve seguir, se desdobrar num outro trabalho. Havia uma proposta dentro da tese onde eu faria uma comparação, mas na qualificação acharam que era algo grande demais, que merecia seguir para o pós-doc ou ser um segundo doutorado. Vamos ver...  Memória, autobiografia e ficção, trauma, escravidão, autoritarismo, violência, formação brasileira, tudo se une em tudo isso, mesmo quando se recalca em supostos verdes anos. E de repente, como escreve Graciliano, “não existe pior prisão do que uma escola primária do interior”. 

Os cadernos organizados na estante:

“Poucos são antigos, porque eu tendo a ir passando as coisas a limpo e me desfazendo”.

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a escrita própria

“Faz alguns anos que tenho um romance em andamento e “asfalto” [texto publicado pela editora Quelônio, em 2017] é um trecho já bastante alterado do episódio em que a personagem relembra a rua da casa da infância sendo asfaltada. Aliás, até o título já mudou - na época da publicação da plaquete pela Quelônio era "Amontoadas". Na Revista Pessoa se pode ler o “Mar, tá muito mar”, do qual também posso dizer o mesmo. Isso não significa que eu esteja há todo esse tempo escrevendo o livro. Ele sofreu e tem sofrido grandes suspensões temporais, o que é um problema de um lado, mas, de outro, tem me provado o quanto as oscilações da memória a partir de diferentes presentes de escrita são um método que joga a favor da história que quero contar ali.  Ano que vem devo voltar a ele com força total. Chega uma hora que é a hora de não brincar com a força do esquecimento. Lembrei agora que no início dos anos 2000, fiquei em segundo lugar no concurso de contos Luiz Vilela. Havia uma promessa de publicação com os classificados, mas isso nunca aconteceu. O tal conto, “Linhas e pontos”, fazia parte de um livro que terminei, que está em meus arquivos, mas não pretendo publicar nunca, jamais. Ele se chama Uma outra. Há imagens muito primordiais do meu universo ali e por isso não deletei, mas uma hora preciso fazer isso (risos).”

 

como começam as histórias 

 

“Eu não consegui responder ao José Nunes, do blog “Como eu escrevo”, quando ele me convidou a participar do projeto dele. Explicitar uma rotina seria bem complicado para mim. Até tentei. Não que eu não tenha alguma, o problema é que ela nunca é a mesma por muito tempo, então achei que seria leviano fixar e divulgar por aí algo que não se fixa de fato. Lembro de ter esboçado algo sobre escrever de manhã, antes de comer qualquer coisa, e por um tempo foi de fato assim. Continuo despertando o estômago bem depois de acordar – há dias que o almoço é minha primeira refeição -, mas não necessariamente o que vem antes da comida é a escrita, pois estou numa fase de horários totalmente móveis agora (pandemia de 2020). E muda tudo quando tenho uma grade rígida. Além do que, a pergunta era como eu escrevo, então podia ser sobre escrever qualquer coisa, incluindo resenhas, tese etc. Mas, agora a pergunta é sobre o “processo criativo” e talvez posso dizer como tem sido até então: algumas imagens e histórias me ocorrem de forma muito fragmentária; dependendo do que é, posso até fazer uma postagem de rede social ou (a maioria) apenas registrar num caderno (pelo menos uma vez por ano revisito meus cadernos todos e vou jogando fora e passando a limpo o que ainda faz sentido guardar); depois de um tempo, reconheço nessas partes quais tendem a se juntar a uma narrativa maior em andamento e até certo ponto arquitetada, mas sofrendo modificações nessa passagem. Outras permanecem apenas o que são, aguardando que a tal narrativa maior surja para se juntar ou não. Isso faço o todo tempo há anos, sem interrupções, e inclui referências de leituras que vão alimentando os tais cadernos e arquivos. Mas aí há os momentos que me dedico de fato a um trabalho de horas seguidas sobre esse material e é esse que eu dizia que sofre suspensões, não é cotidiano, mas é quando estou nele que de fato sinto que estou escrevendo este ou aquele livro. Digo assim, porque há um adiantado e outro que já vem nascendo. Desejo que um dia eu possa ter uma maior regularidade nesse processo da concentração obstinada, estou orientando minha vida para isso, até porque outras histórias não necessariamente vão fazer sentido com a criação a partir dos diferentes presentes.”

instantes recortados

 

“Nunca atuei nas redes sociais com uma pretensão de influenciar. Queria apenas ter o meu espaço para publicar imagens ou pequenos textos sem nenhum pacto de fidelidade com esse ou aquele conteúdo específico, além de interagir com pessoas inspiradoras. A oposição entre a imagem e a realidade nas redes é uma consciência que tenho ao usar esses espaços e por isso há nos meus perfis a advertência: “23% autobiográfico”. Não está ali a minha vida, mas instantes recortados. Uso o Instagram muito mais como um diário simulado, para fazer ver o que nunca veria de outra forma através dos dias. Como a leitura faz parte do meu cotidiano, ela acaba tendo um destaque.

Já quando comecei a escrever para a Pessoa, o meu Facebook sem dúvida se tornou um espaço para divulgar a coluna - e aí a percepção de alguma influência na leitura dos outros ficou mais evidente para mim. Mas fiquei uns bons meses com a conta desativada e cada vez menos tenho publicado ali. Talvez porque estou muito voltada para a escrita da tese e os fragmentos estão indo mais para os cadernos. Sem o desejo de mostrar. 

Este ano, em particular, publiquei no Instagram pequenos vídeos de um minuto de duração, em que leio trechos de livros já lidos, que me vinham à mente neste contexto de confinamento e que depois foram se descolando desse gancho. Curiosamente, comecei a receber mensagens de pessoas que gostavam muito daqueles pequenos vídeos. Gente que eu nem podia imaginar que parava para ver. Teve uma conhecida em especial que me disse que sempre entrava no meu perfil para buscar indicações de leitura. Aconteceu também de pessoas de editoras me pedirem para ler algo ou de eu receber um livro novo de uma autora que tinha citado num post. E olha que é raro eu ganhar livro de editora.”

o autor 

 

“Acho que vai ser mais fácil citar apenas um do que vários, porque aí as chances de deixar de fora algum fundamental será menor. O critério para eleger será o daquele que desde que li, nunca mais esqueci e ao qual sempre retorno de uma forma ou outra: Proust. Até para ler Graciliano ele me é caro. E há livros decisivos para mim, mas não necessariamente as obras de seus autores como um todo (aliás, não li muita coisa importante ainda, sem dúvida). Ok, vai... vou citar um brasileiro vivo e não canônico que escreveu um dos livros da minha biblioteca fundamental: o Rubens Figueiredo, com seu Passageiro do fim do dia – nada monumental como a Rechérche, mas até nela o que mais me pega diz do que sobrevive à ruína, enquanto no Passageiro, a ruína é pura construção, parafraseando tanta gente. Uma leitura está sempre dentro de outras, por isso é sempre injusta essa coisa da eleição.”

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cadernos sobreviventes, guardados desde 2006

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Luciana Araujo Marques é jornalista e pesquisadora. Trabalhou no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, na revista EntreLivros e em editoras como Melhoramentos, Cosac Naify, Estação Liberdade. Foi selecionada pelo programa Rumos Itaú Cultural de crítica literária, voltado para a produção brasileira (2007-2008) e colunista da Revista Pessoa. É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP) e doutoranda em Teoria e História Literária (Unicamp). Publicou na plaquete Quelônio Solto #3 (2017) um trecho de seu romance em andamento.

Fotos: arquivo pessoal

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