“Não entendeu? Quer que eu desenhe?”
Entrevista com Nani Brunini
por Janette Tavano
imagem: Nani Brunini
Nani Brunini sempre foi apaixonada por imagens. Quando ia às bibliotecas, passava horas folheando livros de arte. Prestava atenção a todos os detalhes dos desenhos, símbolos, composições. Mais do que ver, ela lia as imagens. Até hoje, quando vai comprar um livro, não consegue evitar: as ilustrações sempre são a primeira coisa a chamar sua atenção. “Quando bem-feitas, as imagens potencializam uma mensagem”, diz. Para ela, nenhuma expressão faz tanto sentido quanto a pergunta “Não entendeu? Quer que eu desenhe?”
Foi isso, inclusive, o que Nani fez. Começou a desenhar, não apenas para entender o mundo e suas questões, mas também para se fazer entender. Coincidentemente (ou não?), Discórdia é o título do seu primeiro livro, que acaba de ser publicado em Portugal pela editora Pato Lógico – a ilustradora está morando em Lisboa atualmente. No livro, um desentendimento que começa pequeno vai ganhando força até se tornar algo gigante e incontrolável, virando um monstro que engole todos e tudo.
Nesta entrevista exclusiva para o Lugar de Ler – onde Nani também já esteve como aluna em vários cursos de ilustração -, ela nos conta mais sobre Discórdia - ainda inédito por aqui, mas esperamos que não por muito tempo! -, e os processos que envolveram a produção dessa obra que nos ajuda a entender muitas coisas.
arquivo pessoal
imagem: editora Pato lógico
Nani Brunini cursou três anos da faculdade de Artes Plásticas na Universidade de São Paulo e se graduou em Design na UFPE, em Recife, em 2004. Fez mestrado em Cambridge, na Inglaterra, entre 2010 e 2011. Uniu a vontade de conhecer lugares, pessoas e culturas diferentes ao desejo de trabalhar e estudar fora do Brasil e morou em Mannheim, Helsinki, Londres e São Francisco antes de se fixar em Lisboa, onde está agora. Na área do design, trabalhou na TBWA, em Helsinki, e na Samsung, em Londres, participando da criação de conceitos de produtos - desde logos e papelaria a televisões e serviços de banco. Especializou-se em pesquisa de tendência – “uma mistura de pesquisa de usuários e estudo de padrões sociais”, diz. Trabalhou em projetos que imaginavam produtos para um futuro de 10 a 20 anos. Atualmente, continua ligada ao design, criando ilustrações para embalagens e logos, mas passou a dedicar mais tempo à ilustração de livros, algo que sempre considerou um desejo mais que especial.
imagem: Nani Brunini
Lugar de Ler: Discórdia é seu primeiro livro autoral?
Nani: Discórdia é o meu primogênito. Na verdade, foi fruto de um curso que fiz em Lisboa com a Catarina Sobral e o Tiago Guerreiro, supervisionado pelo André Letria, editor da Pato Lógico - três artistas que eu já admirava muito. Aliás, a qualidade dos ilustradores, das editoras e das livrarias em Portugal foi um dos motivos que me trouxe a Lisboa. No geral, sinto que a comunidade local é bastante acolhedora, acessível e colaborativa - qualidades que, na minha opinião, garantiram o sucesso português nas últimas feiras e competições internacionais.
LDL: Você pensou em um público específico de leitores enquanto fazia Discórdia?
Nani: Apesar de o livro ter nascido de uma inquietação minha com a política internacional dos últimos anos, procurei ao máximo não focar em um público, assunto, local ou tempo específicos. Todos nós passamos por situações de discórdia, não importa o lugar ou a idade - desde brigas nos recreios de escolas na Noruega até bate-bocas em vilas de pescadores no Sri Lanka. O ponto principal de Discórdia não é saber o que ou quem gerou o monstro, mas sim pensar em como ele nasceu e quais maneiras os personagens encontram para sair dessa enrascada.
LDL: Qual foi o ponto de partida para Discórdia?
Nani: Discórdia faz parte de uma coleção da Pato Lógico chamada "Imagens que contam", em que a única palavra em todo o livro é o título. Foi justamente da vontade de esticar e subverter a própria natureza desse tipo de narrativa que nasceu o livro. Comecei a brincar com a ideia de barulho em um "livro silencioso", como também são chamados os livros sem textos.
LDL: O que levou você a criar um livro sobre esse tema? Você acredita que se trata de um tema importante para os leitores hoje em dia (crianças e adultos)?
Nani: Por ser brasileira e ter morado recentemente nos Estados Unidos e na Inglaterra, vivi de perto as transições para Jair Bolsonaro, Donald Trump e Brexit - pratos cheios para a "gritaria" que eu estava procurando para a história. Fazer Discórdia foi uma experiência extremamente catártica. Como estava vivendo o drama na realidade, a história foi evoluindo comigo. Para ser sincera, não via um final feliz no começo do processo, mas aos poucos, lendo bastante, ouvindo podcasts e conversando com mais pessoas, fui me tranquilizando. É claro que ainda me deparo com situações em que me sinto como os personagens do livro - às vezes, ouvir o outro lado nem sempre funciona. Mas, ao fazer esse livro, ganhei uma consciência maior sobre a minha própria responsabilidade nesse cenário. Aprendi a aceitar que, por mais certeza que se tenha sobre algo, por mais infalíveis que seus argumentos pareçam ser, não se ganha uma conversa no grito, por melhor que sejam as intenções. Discordar continua sendo uma prática muito saudável, mas realmente só funciona quando é feita de maneira respeitosa e construtiva.
LDL: Quais foram as ferramentas que você utilizou para contar essa história sem palavras? A gente percebe que o uso das cores é bastante significativo. Primeiro, para criar a polaridade de opiniões na hora da briga e, depois, o preto total para criar a ideia de que eles foram engolidos pela briga e toda a sua fúria, perdendo a capacidade de enxergar as ideias com clareza. É isso mesmo? A dobra do livro também é aproveitada para destacar essa polarização, não? Fale um pouco sobre isso.
Nani: O contraste entre o azul e o laranja e a separação na dobra do livro são realmente as indicações mais diretas sobre a discussão estar acontecendo entre dois grupos opostos. No entanto, era bastante importante para mim deixar claro para os leitores que o problema não está no assunto do desentendimento, mas sim na dimensão que os personagens deixaram a briga tomar. Para fazer isso, tive que criar alguns truques visuais e o principal deles foi deixar os balões de diálogos como manchas abstratas. Ao evitar o uso de símbolos e ícones consigo esconder qualquer dica sobre qual é o tema da briga ou sobre quem é contra ou a favor do quê. As expressões exageradas dos personagens e a aplicação das manchas de fala também ajudam o leitor a distinguir quando eles estão brigando (pontiagudas e sobrepostas) ou colaborando (redondas e espaçadas). Isso é particularmente importante quando todos estão dentro da barriga do monstro, que é o momento que todas as falas ficam da mesma cor. É nesse ambiente escuro que vemos os dois grupos se reconfigurando aos poucos - o rapaz e seu cachorro ficam mais à esquerda e o resto do grupo à direita, por exemplo. Achei muito legal a sua interpretação do fundo preto como uma cegueira depois do caos que eles criaram. Acho que tem super a ver. Cheguei a pensar em algo parecido: na minha pesquisa percebi que polarizações acontecem muitas vezes quando os grupos se fecham em pensamentos absolutos - o outro lado sempre é bom ou mau, lógico ou louco, de esquerda ou de direita etc. Os conceitos de nuance e complexidade se perdem em simplificações. No livro, representei isso através dos tons de cinza na barriga do monstro, que é o ambiente onde os personagens se veem forçados a colaborar e encontrar uma solução para saírem de lá.
LDL: A solução de tornar a discórdia um monstro que nos engole é uma metáfora muito bacana para mostrar para os leitores o risco do não diálogo, da intransigência, de não aceitar opiniões diferentes. Fala um pouco sobre as metáforas do seu livro.
Nani: Sou fã de metáforas e, no caso de livros sem texto, elas são bastante úteis. Em Discórdia, as mais importantes são, com certeza, as vozes dos personagens. Do mesmo jeito que elas criam o caos, elas também são essenciais para a solução do problema. Uma das maiores causas do monstro ter sido criado é que, ao invés de um diálogo, o que vemos na verdade são vários monólogos se sobrepondo. Ninguém escuta ninguém e a baderna vira o caos. Quando os personagens são engolidos pelo monstro, vemos que um deles se distancia da gritaria e, ao começar a falar consigo mesmo, reclamando da vida, ele usa um tom bem menos raivoso. É aí que ele percebe que consegue (magicamente) moldar sua fala em qualquer objeto. Então, ele cria um cavalo (poderia ter sido qualquer coisa - um dragão, um navio) e vai à procura de uma saída. Quando os dois grupos se encontram sob o feixe de luz, ele ensina seu novo truque para o resto e, juntos, eles criam o balão de ar. Cada personagem ainda mantém a sua própria voz, sua opinião, mas ao contrário do começo do livro, essas vozes agora são expressas de forma mais ordenada, harmoniosa e construtiva.
Nos primeiros storyboards, tinha pensado em desenhar escadas no lugar do balão, mas achei que seria mais interessante a ligação com o ar, fôlego, leveza e até mesmo com "balões de diálogo". Bem, essa pelo menos foi a intenção. De qualquer maneira, o legal de livros sem palavras é que estão abertos às mais variadas interpretações e cada um conta a história do seu jeito.
LDL: Também chama a atenção o tamanho das pessoas. Elas são pequenas em relação à página, e ficam ainda menores conforme a briga aumenta. Somente quando o mediador começa a conversa, para achar uma saída, ele ganha um tamanho maior na página.
Nani: Eu uso essa espécie de "zoom in/zoom out" quando quero potencializar o drama ou guiar o olhar do leitor para um certo personagem ou ação. Essa troca de proporções também me ajuda a controlar o ritmo do livro, tornando o virar de páginas mais rico e interessante.
LDL: Tem um menininho, que aparece em primeiro plano e brinca com o cachorro, e é o único que não participa da briga, mas, mesmo assim, é engolido pela briga. Conta pra gente sobre esse personagem.
Nani: Essa foi uma sugestão do André Letria - incluir alguém que não participa diretamente da criação do monstro, mas que mesmo assim sofre as consequências desse caos. Achei essa sacada muito boa porque acho que é isso o que realmente vem acontecendo nessa loucura de hoje. A pandemia é um bom exemplo - não importa se você lê o jornal “Intercept” ou escuta a rádio Jovem Pan, ou se até mesmo não faz nem um nem outro - no final, só há um número limitado de UTIs e de vacinas no mundo. Todos estamos envolvidos - ativamente ou não. O silêncio, aliás, pode às vezes ser também tão ou mais prejudicial do que um grito.
O personagem que escolhi para ser essa pessoa neutra foi o menino - mas poderia ter sido qualquer um dos outros. Há outras duas crianças na cena, mas, ao contrário do menino, elas entram na gritaria. Aliás, incluí os três justamente para reforçar a ideia de que o tema da briga não é necessariamente adulto. Os grupos podem estar discordando violentamente tanto sobre política como sobre quem vai fazer o peru de Natal esse ano - por que não?! Já vi brigas homéricas nessa época do ano...
LDL: E qual o papel do mediador, aquele que consegue salvar a todos, mostrando a saída para aquela situação? Você escolheu um personagem aleatório?
Nani: A escolha foi aleatória sim. Aliás, o meu critério de criação dos personagens, assim como o papel de cada um na trama, foi deliberadamente aleatório, já que a realidade em que nos encontramos está tão emaranhada que não importa - ou não ajuda muito - descobrir quem é o herói e quem é o vilão.
Na verdade, depois do livro terminado, me dei conta de que o personagem que escolhi era justamente o que tinha orelhas grandes, ou seja, uma ótima metáfora para um grupo de pessoas que precisam parar de gritar e ouvir uns aos outros. Foi sem querer, mas dei parabéns para o meu inconsciente.
Outra coisa que descobri depois do lançamento e que me deixou superfeliz foi saber que Discórdia tem sido usado como um "começo de conversa" em aulas de faculdade e em um consultório de psicólogos com adolescentes.
LDL: Quais autores de livros ilustrados te inspiram?
Nani: Tenho um gosto bastante eclético, que vai do minimalismo de Saul Steinberg à explosão de cores de Susana Monteiro. Gosto muito de como Maurice Sendak usa as bordas do livro para ilustrar a passagem entre o mundo real e o imaginário em Onde vivem os monstros. Acho genial como Bruno Munari e Hervé Tullet brincam com a ideia do livro como objeto. Adoro como Marine Schneider e Christian Robinson falam sobre temas tão complexos, como morte e racismo, de maneira leve, mas muito honesta. Acho brilhante também o humor e a interação entre texto e imagem de Jon Klassen e Edward Gorey. Sou superfã do Livro sem figuras, de B. J. Novak, e da simplicidade do Harold and the purple crayon, de Crockett Johnson. Adoro também os livros de não ficção que explicam conceitos complexos sem você perceber que está tendo uma aula, como o Impossível, de Catarina Sobral.
Admiro artistas bem-humorados (não necessariamente engraçados), que trazem um poder de síntese sofisticado e brincam com os limites de forma inteligente, tanto em estética como em narrativa.
imagem: Nani Brunini
imagens: Nani Brunini
imagem: Nani Brunini