Pequeno conto de engolir
de Cristiane Velasco e Juliana Storto
Leitura de Paula de Santis
Pequeno conto de engolir é um título delicado para um livro que quer contar a história do mundo todinho.
Este pequeno conto circular começa com a cena singela (cada vez mais rara, infelizmente) de uma criança brincando numa poça d’água. De repente, um susto! Como em um rodamoinho que passa levando tudo para o seu centro, cada elemento vai sendo engolido por outro, maior, mais forte, até que, finalmente, parece não haver na hierarquia da natureza nada mais poderoso do que um vulcão em erupção.
Cores em tom pastel, cheias de texturas e de vida, conferem uma certa proteção acústica ao estrondo de cada página. Quando, em momentos precisos, as palavras saem de cena, a história se deixa contar apenas por meio das imagens, que continuam reverberando ruídos, exalando luz, cheiro e um certo movimento invisível a olho nu, indicando que a vida é mais forte do que os chacoalhões que o mundo pode levar.
Já o leitor faz bem em se deixar envolver pelas imagens. Deixar-se levar para o centro que vai afastá-lo, a cada página, do seu ponto de controle. Logo nas primeiras engolidas, a sensação é a de observar organismos vivos pelas lentes de um microscópio. Imagens arredondadas, com densidade e estrutura, vão se entrelaçando como num laboratório, onde se estuda tudo o que é mínimo, complexo e autônomo.
De repente, as figuras ganham outra proporção: baleia, vulcão, gigante e… memória. A imensidão é tanta que não cabe por inteiro nas páginas. O leitor se sente pequenino e à deriva nesse universo vivo. E no meio do sem fim da via láctea, volta a sensação de que tudo está na mira de uma lente de aumento. Alívio.
E justamente nesse instante, surge uma barriga. Redonda. Que carrega dentro dela um ovo. Redondo. E dentro do ovo, uma mulher, chamada de a Senhora dos Sonhos. Alguém capaz de gerar a vida - seja em forma de gente, seja em forma de sonhos. Primeira dose de esperança.
Essa senhora é formada por um incômodo emaranhado de fios (de cabelo? de histórias?) com os quais ela borda. Borda, inclusive, a porta por onde nasce, renasce. Por onde dá à luz tudo o que carrega dentro dela. Tudo o que foi engolido. No conto – e simbolicamente –, ao longo da História. É ela quem detém o poder do começar de novo, para fazer igual ou diferente.
As cores, a partir daí, vão se dissolvendo, aguando, se transformando. Reconstituem um cenário, como quando passa uma tempestade. Fica tudo igual, mas diferente. É tudo novo, mas como antes.
Pompeia está aí para nos mostrar como “congelar” o tempo e as histórias, que hoje voltam para serem revividas e recontadas. Tudo bem redondo.
Lá no fundo da última camada do que sobra, há uma chama que não se apaga. Basta deixar a natureza fazer o que precisa ser feito. Tudo se renova. Outro ciclo recomeça. Redondo e circular, como o planeta Terra. Jamais idêntico.
Por meio dessa história que fala sobre a origem do mundo a partir da perspectiva da imaginação de uma criança, as autoras tocam em temas muito contemporâneos com força poética e, também, com uma carga de urgência.
Colocam em evidência a mulher e o feminino. Guardiãs da vida e do sagrado, culturalmente responsabilizadas pelo trabalho solitário de cuidar. Elas não esmorecem, mesmo quando são apenas um fiapo de gente. Segunda dose de esperança.
Elas também recuperam, por meio da fábula e da fantasia, uma cosmovisão ancestral - cada dia mais em destaque à medida que nos reaproximamos dos povos originários brasileiros. Sabedoria essa que se prova cada dia mais profunda e necessária para a manutenção da vida enquanto somos confrontados com a realidade dilacerante de destruição das nossas florestas, dos nossos rios, da nossa fauna e da nossa gente.
Acendem também alguns alertas. Para a fúria da natureza, por meio da água, dos animais, do céu e da terra. O que nos leva para a fúria do ser humano, que mata um ao outro na guerra, no terrorismo, na internet, no virar da esquina.
Nos lembram que a vida continua, apesar do ser humano, mas também com ele e por causa dele. Por meio dele, graças a ele. Quanta esperança elas são capazes de entregar em algumas páginas! Quanta vida elas alimentam de esperança.
Todas as imagens foram cedidas por Juliana Storto.
Pequeno conto de engolir
texto de Cristiane Velasco
Ilustrações de Juliana Storto
Editora Ozé
ISBN 978-65-86666-12-0
72 páginas
20 x 17,5 cm
Para todas as idades