O sonho de Vitório
Veridiana Scarpelli
"Eu não pensei em nenhum momento que
estava fazendo um livro infantil ou pensei
em crianças de forma alguma. Eu fiz o Vitório
pra mim. Talvez porque o Vitório seja eu.
Porque eu sou/estou em tudo que desenho”
D_Veri querida, super obrigada por responder às perguntas. Pensei em fazer uma coisa diferente porque, cada vez que leio O sonho de Vitório, ganho uma nova história ou elementos novos se agregam a minhas histórias, já antigas. Então resolvi ler e te contar minha leitura: fui escrevendo enquanto lia. Assim, podemos conversar também a partir disso, se topar. Você pode interromper quando quiser e fazer comentários, contar coisas, dar opinião, discordar, sei lá, o que tiver vontade, se tiver vontade. Como se a gente estivesse mesmo conversando.
V_Oba!
D_Então, vamos lá:
Na capa, o Vitório voa, como se estivesse se jogando no livro. Vou correndo abri-lo para ver o que acontece e pá: uns zzzzz saindo pela página direita… daí você vira a página e pum: encontra o cara dormindo. Alguma coisa tem aí… e é ele mesmo, voando, mesma imagem da capa mas sem os confetes que anunciavam a festa. A página tem só ele, voando no vazio. Outro som – quacquac…- nos faz parar, junto com o Vitório – olha a cara dele! E de repente aparecem esses pássaros (pássaras?) com vestidos de festa, com seus guarda-chuvas que ajudam a voar e protegem da água, parece que estão dançando na chuva. Ele logo tira a máscara e a capa, se despe inteiro, agora é só Vitório, para brincar com eles nas poças, que experimenta devagarinho, embora pronto para pular. Essa entrega total me faz pensar de novo – porque ele já é super-herói - em como o Vitório é corajoso. Alguém escreveu sobre isso – acho que foi mesmo no texto da quarta capa ou numa resenha por aí, não lembro – mas acho que junto com a ideia de coragem do Vitório, ou contrapondo-se a ela, tem a falta de ameaça. Ele até estranha o fato de afundar na poça, mas em nenhum momento passou pela minha cabeça que algo pudesse estar o ameaçando, sabe? … é tudo mesmo uma grande viagem, um sonho, em que o Vitório está sempre confortável e curioso. Na verdade, se sonha em ser super-herói, talvez queira essa coragem. Olho como ele se coloca inteiro, se joga mesmo nas coisas, ou deixa que elas o levem. Isso faz com que eu pense também no seu processo de criação, em como deixou o Vitório te tomar e te contar essa história, que você não poderia ter escrito de outra forma, sem ele. Como isso é corajoso e te pede para se colocar inteiramente – e sem roupa nenhuma – à disposição da ideia, do movimento da mão que desenha.
V_Isso é o que mais me pega quando tenho que falar do Vitório… eu não criei a história antes, com mil projetos e pensamentos e antecipações. Eu o rabisquei no caderno e pensei que seria um bom personagem. Queria fazer uma narrativa sem texto e acho que o surrealismo (o sonho) é uma forma bem segura pra arriscar isso pela primeira vez.
Ops, ele vai afundando, afundando, afundando até que, no fundo do mar, encontra um buraco – uma luz! E, como se seguisse um chamado – da curiosidade?Curiosidade pura! Vitório é um destemido : ) De um novo desafio?– se enfia no buraco sem medo. Parece que a luz emana da fantasia – e fantasia emana mesmo luz, luzes! Tem uma nova possibilidade aqui, um outro caminho a seguir.
E, de novo fantasiado, agora de coelho – isso sempre me mata de rir! Um porco fantasiado de coelho: é muito bom! Olha, eu me diverti muito pensando nos bichos fantasiados de outros bichos. O Vitório tá de coelho, os ratos estão de abelha, a cobra de tubarão… – ele abre a porta para entrar na festa. Agora sei que a festa é para ele, mas eu nunca tinha pensado nisso antes de ouvir você falar. Adoro a fantasia da cobra que parece uma garra o chamando para a festa assim que ele abre a porta, e logo você vê na dupla seguinte que é o rabo da cobra combinado a parte da baleia – uma citação ao próprio desenhar, um gesto que conta da sua presença ali, junto com o material. Essa parte da festa é um dos poucos momentos em que eu acho que a encadernação francesa (com a folha dobrada) deu um tilt… foi preciso repetir a imagem e acabou ficando um pouco estranho isso da cobra (fantasiada de tubarão hehehhe) aparecer duas vezes na sequência.
Adoro a carinha lisonjeada que Vitório faz, para mim porque foi convidado a quebrar a piñata, e a sequência de movimentos cegos, em que só a cabeça e as patas te contam de todo aquele esforço, de como foi duro acertar até que ela explode na nossa cara! Numa escola em que fui falar do Vitório, um menino disse que tinha entendido que ele tinha achado a “turma” dele na festa – os outros porcos fantasiados de coelho – e todos dançavam juntos. Tenho a sensação de estar tudo em 3D e fico passando a mão no papel para me certificar de que não tem nada pulando mesmo, é só minha imaginação solta, ou mais certamente, sua mão que se soltou ao ponto de criar espaço, tempo e movimento.
E daí, para acabar, a gente vê de novo o Vitório dormindo, agora mais feliz (?) deitado sobre pétalas, porque no sono o sonho se realiza e promete outros mais. Que venham!
E porque uma das premissas que eu tinha/tenho pra todas as histórias do Vitório é justamente a narrativa circular… vai do fim pro começo e, portanto, não tem fim. MAS – e isso faz parte da premissa – não é para o fim ser igual ao começo. Por isso dele estar na mesma posição da primeira página mas em cima das balas (é um monte de balas da piñata).
E. agora, relendo… fico pensando que os pássaros foram muito espertos em fazer com que o Vitório seguisse o trajeto que lhes propuseram: mergulhou na poça que armaram, assustado no fundo do mar, vai afundando sem poder fazer nada até que vê a luz de uma nova possibilidade, outra fantasia, uma porta e a festa que o esperava. Mas só consigo pensar nisso agora, porque ouvi você dizer que era uma festa surpresa para ele…
Eita! Não tinha pensado nisso….faz sentido…. Esses pássaros me enganaram também!
D_Umas perguntinhas…
Como é para você conhecer as diferentes histórias que as pessoas criam a partir da sua?
V_É muito, mas MUITO legal! Até porque eu nem tenho tão claro na cabeça a história que eu mesma pensei pra começo de conversa. Hahahaha!
Fora que cada faixa etária, por assim dizer, inventa a história pra um lado ou se preocupa com um ou outro aspecto dela. É bem curioso de ver. Nessa escola que falei, um outro menino me perguntou porque ele tirava a roupa pra entrar na água se era tudo um sonho.
D_Quando leio O sonho de Vitório, fico sempre muito impressionada como você imprime movimento à imagem, usando diferentes estratégias: uma pata levantada, uma sequência de Vitórios tentando acertar a piñata, a bundinha com o rabicó balançando… é quase como ver um filme! Você poderia falar um pouco sobre o movimento no desenho?
V_Ai… difícil… porque eu não faço, assim, superconsciente isso. Mas, tem uma coisa que eu faço sempre e sinto que ajuda muito: eu me ligo emocionalmente ao personagem que estou desenhando e junto isso com muita observação a detalhes e posturas. Meio confuso, né? Vou tentar explicar pela tangente… quando a Laurinha [Laura Teixeira] me convidou pra oficina dela, eu tinha que propor um exercício. Pedi para os alunos levarem fotos deles e de familía, que eles gostassem. Olhamos para todas essas fotos juntos e fomos fazendo apontamentos sobre a postura das pessoas nas fotos, o enquadramento, pra onde olhavam, as cores, sombras, gestos e expressões. Daí, propus para eles desenharem uma foto imaginária de família. E, em outro momento, mas ainda seguindo a lógica - onde eu queria chegar pro exemplo -, que eles desenhassem um recado para alguém sem usar palavras.
Tinha que ser algo que eles quisessem dizer de verdade, para alguém de verdade, mas só através do desenho. Entende? Eu tô sempre falando muita coisa sem texto e, pra isso, me acostumei a dar muita atenção aos detalhes do corpo e movimento que me ajudam a dizer exatamente o que eu quero, ou o mais próximo do que eu quero… hehehehe!
D_O projeto gráfico contribui muito para a questão do movimento, né? Uma folha única, que se desdobra (ainda que não se abra, a sanfona está lá) no virar das páginas enquanto a gente vai construindo a narrativa. Você trabalhou junto às designers? Como foi essa parte do processo?
V_Isso foi uma sugestão da CosacNaify. Totalmente! E a sugestão incluía andar uma página com as ilustras em relação ao boneco que eu tinha mandado para eles. A dupla do bum! era uma dupla mesmo… aliás, esse é outro momento que talvez tenha ficado estranho: aí e na parte da festa que os bichos se repetem. Mas, enfim, a proposta era justamente ajudar o movimento e o encadeamento da narrativa usando essa encadernação e tal. Eu gostei muito. Acho que fez uma baita diferença – apesar de que, olhando em retrospectiva, eu deveria ter mexido nesses dois pontos
D_Mas, você fez os desenhos em papel cartão, certo? Você diz que os desenhos já saíram contando a história, como foi montando as duplas, pensando no que estaria na página ímpar e no que estaria na par? Você nem fez um boneco?
V_Eu fiz um rascunho das duplas no caderno antes pra entender a sequência e testar os elementos. Mas isso foi a lápis mesmo, rascunhão básico. Depois, fiz partes no cartão, partes em papel e juntei tudo no computador. Acabei montando um boneco virtual apenas – o pdf que mandei pra Cosac por email.
D_Você pode contar um pouco sobre a escolha – tão acertada - de materiais?
V_A verdade verdadeira é que eu tava super sem trabalho na época, fritando sobre meu futuro de ilustradora e quis usar meu tempo “livre” pra treinar outras técnicas e materiais com os quais não tinha muita afinidade. E desenhar a mão também, porque eu fazia muita coisa no computador e achava que isso me emburrecia de alguma forma. Tinta nunca foi muito a minha praia então peguei esses pastéis – que devem ter poucos anos a menos que eu – hahahaha – e saí testando possibilidades. Eu gosto bastante de pastel oleoso. É uma tinta em bastão…
Acho muito engraçado olhar para esses desenhos hoje em dia… eu faria tão diferente! Eu vejo mais imaturidade e acaso do que propriedade de técnica e linguagem.
D_Conta um pouco desse processo de transformação – talvez esse não seja o melhor nome… de tomada (?) da história escrita por um personagem que te escreve uma história sem palavras. Depois, conta como foi isso? Como foi para você, de novo (porque você fez isso também quando decidiu se dedicar à ilustração, né?) se deixar guiar pelo desenho, pela mão?
V_Eu tentei muito escrever uma história. Escrevi mesmo, no fim. Mas quando fui desenhar o personagem pra história escrita não consegui. Era duro, chato, bobo. Quebrei a cabeça até perceber que chata era a história – tinha moralzinha ainda por cima, argh! – e entendi que não era isso que eu queria fazer. Fora que eu nem tava pensando que conseguiria publicar de verdade… eu queria ocupar meu tempo (que era muito na época) fazendo algo que me ajudasse a desenvolver meu desenho e pudesse, quem sabe, gerar frutos reais. Eu desenhei o Vitório no canto da página que tava recheada da personagem chata. Fiz pra soltar a mão e me convencer que eu tava mesmo desenhando com a mão direita, porque parecia que era com o cotovelo de tão ruim! E foi tudo meio que num mesmo raio: olhei a simpatia daquele porco contrastando com o pedantismo daqueles vários testes de personagem e pensei “bom, nem sei aonde vai mas tá na cara que o porco é o caminho”. A segunda coisa que pensei foi que meu lance é desenho, não texto, e que eu podia me inspirar nos desenhos surrealistas do Gato Félix, de que eu gostava tanto, e fazer uma história mais livre mesmo. Uma viagem, uma loucurinha sem tempo e espaço.
D_Você tem imagens do processo? Se importa de compartilhar?
V_Tenho algumas coisas no caderno e os scans das partes antes de montar… assim como o pdf que mandei pra Cosac. Te mando algumas coisas mas se precisar de mais, ou outras coisas, dá-se um jeito : )
D_Os livros de imagem trazem sempre texto (muitos, de modo geral, porque se desenham na relação com o leitor) implícito. Como você vê isso uma vez que sua forma de “falar” com o mundo também se dá muito pelo desenho?
V_Eu acho que é uma faca de dois gumes: por um lado há uma riqueza incrível no interpretação de um texto sem palavras. Cada um vê uma coisa com um peso diferente… claro que a linha mestra da narrativa tem que ser mais ou menos clara e compreensível se você quiser mesmo contar uma história, mas todo o resto vai se moldar a partir do filtro de cada um. Mil histórias possíveis na mesma narrativa. Mas, por outro lado, não foram poucas as vezes em que eu tinha certeza de estar sendo clara, ou que todo mundo ia perceber o que eu tinha pra dizer, mas não: passou batido ou foi totalmente mal interpretado.
D_Conta um segredo sobre o Vitório? Ou sobre o desenhar?
V_Eu não pensei em nenhum momento que tava fazendo um livro infantil ou pensei em crianças de forma alguma. Eu fiz o Vitório pra mim. Talvez porque o Vitório seja eu.
Porque eu sou/estou em tudo que desenho.
D_Um beijo e super obrigada!
Dani