Os “assuntos pendentes” de Leo Lionni
por Annie Lionni
Este artigo foi escrito por Annie Lionni, neta de Leo Lionni, por ocasião da comemoração anual da Semana dos Livros Banidos [Banned books Week] de 2017, para a Publisher’s Week. Annie reflete sobre o trabalho de seu avô, cuja marca é uma grande consciência social – muitas vezes contestada– e a história completa por trás de seu primeiro livro-álbum, pequeno azul e pequeno amarelo.
Meu avô, Leo Lionni, escreveu e ilustrou 40 livros para crianças durante seus “anos de aposentadoria”. Seu legado literário inclui quatro Caldecott Honors [Distinções Caldecott] por excelência em ilustração e dúzias de outros prêmios, um currículo de ensino fundamental baseado em seus livros, descrito em The Girl with the Brown Crayon [A menina com o giz marrom], de Vivian Gussin Paley, inclusões em listas dos melhores livros e um sem fim de elogios de professores, bibliotecários, pais e crianças. É muito comum me perguntarem o que inspirava Leo a escrever suas histórias.

A dedicatória de pequeno azul e pequeno amarelo reflete a origem do livro.
A história tradicional de como Leo criou seu primeiro livro para crianças envolve meu irmão, Pippo, e eu, em 1959. Naquele tempo, Leo era diretor de arte da Time Life, e ele nos levou de trem da Grande Central em Nova York para Greenwich, Connecticut, para passar o final de semana com ele e com nossa avó Nora. Ele nos distraiu cortando papéis coloridos de uma revista que tinha na pasta para criar a história de pequeno azul e pequeno amarelo. A resposta positiva que lhe demos foi o suficiente para inspirá-lo a recriar a história com mais cartolinas no seu estúdio em casa. Seu amigo, Fabio Coen, que depois se tornou editor da Pantheon Books, viu o boneco naquele final de semana e eles decidiram publicar pequeno azul e pequeno amarelo.
Ao longo dos anos, a história da criação do livro foi contada tantas vezes, e em tantas línguas, que acabou por ganhar vida própria, se transmutando em uma lenda de duas crianças levadas e um avô desesperado tentando impedir que perturbassem outros passageiros. Em suas memórias, Between Worlds [Entre mundos], Leo diz que estava, na verdade, distraindo os outros passageiros enquanto nos mantinha ocupados. A história mais interessante sobre como surgiu o pequeno azul e pequeno amarelo – e que inspirou todos os outros livros de Leo – me ocorreu apenas muito recentemente.
A vida profissional de Leo era bem movimentada e bem-sucedida, e ele era agraciado com trabalhos de muito prestígio. Foi diretor de arte da revista Fortune, parte do império Time Life, de Henry Luce, de 1948 a 1959. Em 1946, ele criou a campanha “Nunca subestime o poder de uma mulher” para o Ladies Home Journal. Foi um dos fundadores da Conferência Internacional de Design de 1949 em Aspen – e, curiosamente, voltou como palestrante em sua 40ª edição, que teve como enfoque as crianças. Concebeu o protótipo para a Sports Illustrated em 1954, e seu projeto icônico para o catálogo da exposição The Family Man [O homem de família], no Museu de Arte Moderna, em 1955, referência de inúmeras gerações. Leo tinha também seu próprio estúdio e clientes como a Sociedade Americana contra o Câncer, a Corporação de Conteiners da América, a Olivetti. Os anos 1950 foram o auge de sua carreira como designer gráfico.
Em meados da Guerra Fria, havia planos para um pavilhão dos Estados Unidos da América na Feira Mundial de Bruxelas de 1958. Membros da delegação americana estavam preocupados que os EUA fossem criticados ferozmente por sua política de segregação e outras restrições nacionais – como a Crise de Little Rock, em 1957, em que nove estudantes em Little Rock Arkansas, foram proibidos de frequentar a escola até intervenção das tropas federais enviadas pelo Presidente Eisenhower. Estávamos sob o olhar vigilante do mundo, que tomava nota de nossos problemas domésticos e o modo como lidávamos com eles.
Ficou decidido que, além de nosso pavilhão regular, os EUA criariam um pequeno pavilhão chamado “Assuntos pendentes”. A teoria era que, ao revelar publicamente nossas falhas, evitaríamos algumas críticas previsíveis de outros países, especificamente, a Rússia. Grupos de foco e pesquisas foram definidos para determinar quão efetivo seria o plano para desviar a inevitável crítica. O projeto havia sido concebido – e patrocinado – por Henry Luce, em colaboração com o Departamento de Estado. Como Leo trabalhava para Luce na Fortune, lhe pediram para fazer o projeto do pequeno pavilhão, que seria composto de três seções: os problemas, o progresso e os objetivos, cada um contido em sua própria estrutura física, um levando ao outro. Os tópicos incluídos eram segregação, pragas urbanas e o desperdício de recursos naturais.

Fotografia tirada por Leo Lionni da obra de Leo Stashin exposta na mostra

imagem interna da edição brasileira de pequeno azul e pequeno amarelo (Livros da Matriz, 2024)
Na última seção, que retratava a solução ideal ou objetivo, Leo incluiu uma fotografia grande de um grupo de crianças de diversas raças brincando de ciranda-cirandinha. Com a proximidade da abertura, os senadores sulistas demonstraram significativa preocupação. Eles sentiam que estavam expondo questões domésticas privadas de um modo que colocava os estados do Sul em maus lençóis. Uma enxurrada de cartas e telegramas entre políticos americanos, incluindo o senador Herman Talmage, da Georgia, senador Strom Thurmond, da Carolina do Sul, e o Departamento de Estado ilustram a oposição que estava sendo construída contra todo o conceito do pavilhão.
Jack Masey, designer da Agência de Informação dos Estados Unidos, responsável pelos projetos solicitados pelo Departamento do Estado, e o escritor Conway Lloyd Morgan reproduziram um telegrama escrito por Herman Talmadge em seu livro, Cold War Confrontations [Confrontos da Guerra Fria]. Nele, apresenta-se Talmadge distanciando seu estado da posição oficial que exige o fim da segregação. Ele escreve: “É óbvio... que a exposição da Fortune vai apresentar apenas um lado dessa questão e vai construir a imagem mais negativa possível daqueles estados e regiões do nosso país em que a sociedade segregada se provou como a melhor opção para todas as raças envolvidas”. Apesar dessas objeções, “Negócios pendentes” foi aberta ao público. Entre os vários esforços para transformar o tom do pavilhão, colocaram uma placa sob a imagem das crianças brincando de ciranda, garantindo que ela não representava os objetivos dos Estados Unidos.

imagem interna da edição brasileira de pequeno azul e pequeno amarelo (Livros da Matriz, 2024)
Dentro de algumas semanas, a exposição foi fechada. Precisavam de um bode expiatório para justificar o fechamento do pavilhão e culparam Leo por um mau projeto. No entanto, era claro nas pesquisas com os visitantes que o pavilhão havia sido bem recebido por pessoas do mundo todo. Na verdade, os conflitos entre nossos próprios senadores e o Departamento de Estado que causaram o encerramento. Uma série de artigos foram escritos nos últimos anos sobre o pavilhão e as polêmicas ao redor de sua breve vida na feira. Historiadores – particularmente aqueles especializados na importância do Design Gráfico como força influente no pensamento popular – incluíram a história da exposição em seus artigos. O próprio Leo ficou de olho nos outros eventos referentes ao Pavilhão Americano; ele tinha voltado para Nova Yorque, mas sua cabeça ainda estava em Bruxelas. Saul Steinberg havia feito, sob encomenda, um mural de mais de 70 metros, retratando a vida americana. Quando a Feira terminou, o mural, composto por oito painéis, foi cortado em 84 placas e armazenado. Leo escreveu a Steinberg: “Espero que eles sejam abrigados corretamente depois da exposição. Vou criar um grande caso se não o fizerem”.
Em julho de 2014, eu recebi um e-mail da esposa de Jack Masey, Beverly Payeff-Masey, sobre uma imagem no livro Cold War Confrontations. A imagem era uma das fotos de Leo, tirada nos primeiros dias da Feira Mundial de Bruxelas, antes de “Assunto pendentes” ser fechada. (Leo tirou, na verdade, outras 57 fotos como essa). Payeff-Masey descreveu a última imagem do pavilhão como “um grupo de crianças brincando de ciranda-cirandinha”. Eu sabia que tinha ouvido falar de uma brincadeira com esse nome – mas onde?
Mais tarde, naquela mesma noite, eu me revirei na cama até que finalmente levantei para verificar a data da Feira. Era 1958, um ano antes da publicação de pequeno azul e pequeno amarelo. Peguei um exemplar do livro e fui para a página em que há um grupo de personagens brincando de ciranda-cirandinha. A composição da página é exatamente a mesma da imagem das crianças brincando no pavilhão “Assuntos pendentes”.
A exposição de Leo foi editada e depois totalmente cortada da Feira Mundial de Bruxelas, mas, no ano seguinte, ele começou o primeiro do que acabou virando uma obra composta por 40 títulos para crianças, todas alegorias, que falam sobre um mundo mais perfeito. Todas as histórias de Leo são sobre comunidades. Todas elas contêm um problema e todas buscam soluções. Alguns dos problemas que ele abordou em seus livros – como tantos dos nossos próprios aqui os EUA – não são resolvidos nas histórias, mas a maior parte deles é. Como o pavilhão, suas histórias tratam do processo na mesma medida em que tratam de qualquer outra coisa: identificar o problema, lidar com o problema e alegrar-se porque o problema foi resolvido.

Aqui estão apenas algumas das histórias que Leo contou sobre resolver problemas no mundo de suas criaturas. Triz (originalmente publicado em 1963) coreografa seus amigos para que formem um grande peixe para espantar o atum que os ameaçava. Geraldine, do Geraldine and the Music Mouse [Geraldine e o camundongo da música], de 1979, ajuda o irmão a escutar música. Tico, do Tico and the Gold Wings [Tico e as asas douradas], de 1964, usa suas penas douradas para ajudar aqueles que precisam. Senhor McMouse, de 1992, salva os amigos chutando o gato ameaçador. Nicolas, do Nicolas, Where Have You Been? [Nicolas, por onde você andava?], de 1987, é um camundongo criado por pássaros, como se fosse um deles. Fish is Fish [Peixe é peixe], de 1970, é sobre ponto de vista.
outros livros de Leo Lionni publicados no Brasil
Frederico, originalmente publicado em 1967, garante o sustento da imaginação e da poesia de sua comunidade de camundongos frios e famintos. E a lagarta no The Alphabet Tree [A árvore do alfabeto], de 1968, leva uma mensagem contra a guerra importante para o presidente.
A censura com a qual Leo lutou no encerramento do pavilhão em Bruxelas não foi a última. Houve muitas ocasiões em que as histórias dele foram banidas em um ou outro lugar porque eram consideradas ameaçadoras ao status quo. Como aconteceu não faz tanto tempo, em 2015, com três livros seus, pequeno azul e pequeno amarelo, Triz e Pezzettino [Pedacinho], apareceram em uma lista de livros banidos das escolas por um prefeito de Veneza, na Itália, porque foram considerados potencialmente ameaçadores às famílias tradicionais. Esses livros são sobre comunidade, tolerância e ingenuidade. Eles são atemporais, assim como o são, aparentemente, os problemas que eles abordam.
Mesmo a anedota da criação de pequeno azul e pequeno amarelo sendo verdadeira, essa é uma história sem importância. Percebi que a criação dos livros de Lionni têm pouco a ver com entreter a gente no trem. As histórias de Leo eram seu modo de encerrar assuntos e tentar fazer um mundo melhor.
PWxyz, LLC. Todos os direitos reservados. Usado de acordo com permissão. Este artigo foi originalmente publicado em PublishersWeekly.com em 28 de setembro de 2017.
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